sexta-feira, 13 de maio de 2016

Um romance é pura máquina de significar



Escrever é multiplicar o sentido das coisas. Desestabilizar fronteiras: fazer o real aparente e o aparente real enquanto o mundo manifestado pela linguagem não é mais nem real nem aparente mas outro mundo, o reino da palavra. Esse é o sentido primordial da poética; a premissa não subvertida da mimesis aristotélica. O criador de formas tem entre o mundo por ele habitado e o mundo sempre selvagem da imaginação seu lugar de périplo. E, mede-se sempre o valor de sua criação pela maneira ciente com que desconstrói aquilo que foi condicionado como algo estabelecido e única forma de ser.

É evidente que essas considerações não se referem à maior parte das criações literárias, sobretudo, as designadas como prosa. A necessidade da verdade do narrado impôs ao romancista, por exemplo, um afastamento do tom às vezes fantasioso ou fantástico, para uma aproximação com a realidade vivida de maneira que o romance terá se convertido quase na sua fotografia, por vezes minimalista, por vezes histórica ou documental. Esse processo, evidentemente, não é restrito a um tempo e nem pode ser determinado em qual momento da história da literatura nasceu, afinal, nesse campo lidamos com a transformação própria do pensamento e este, todos sabem, não é marcado por presenças fixas.

Mas, terá sido na ocasião quando dizer a realidade não pode se confundir com o desenho meticuloso do visível – tal como numa pintura de traço naturalista – que o texto literário ganhou outra grafia ou, para ser mais claro, fez um retorno aquilo que o distingue em parte do exercício retórico. Na literatura brasileira, os exemplos são poucos. Se o leitor tiver acompanhando com atenção esse raciocínio já terá em mente pelo menos três nomes que poderíamos incluir nesse rol de inventivos: um é o Guimarães Rosa (Grande sertão: veredas), outro é o Euclides da Cunha (Os sertões) e o terceiro é Mário de Andrade (Macunaíma).

A essa tradição, quase nenhum outro escritor da nossa literatura terá acompanhado. E é difícil dizer, num texto cujo propósito não é fazer uma investigação sobre o caso, por que razão esse cordão não terá, cada vez mais, ganhado forma. Difícil mas não impossível de acreditar, ao menos sem maiores compromissos, que uma das razões se dá pela acusação por vezes vulgar de herméticos; estereótipo que, cunhado de forma diversa pela crítica e pela mídia, terão dado a esses escritores um afastamento do público leitor. Numa sociedade como a nossa, construída por índices alarmantes de analfabetismo funcional, essa ameaça é quase sinônima de isolamento e, logo, marginalização da obra e do escritor.

É verdade que, guiados pelo estereótipo do hermetismo, sempre houve alguns pretensos escritores que nunca terão deixado de alinhavar enredos cuja natureza prima pela não-fluência da linguagem em detrimento de uma construção literária somente para poucos agraciados e no final o que cometem são textos de valia estética duvidosa e não receptiva ou de fato comprometida com essa posição inaugural do gesto poético: a criação. 

Outra, o grupo que aqui interessa, se filia a esse pequeno reduto de uma linha importantíssima para a literatura não só brasileira mas a produzida nos países da América Latina – onde se pode ler outros nomes, estes sim, muito bem reconhecidos fora de seus estados de origem – reanimam essa tour de force de desapropriação da língua de suas trivialidades e elaboração de uma obra que exige e muito do seu leitor não porque querer o hermetismo (e este nem é um termo adequado) mas porque primam por uma oxigenação dos modelos aí vigentes. É nesse pequeno grupo onde é permitido inserir o Carlos Emílio de Maria do Monte: o romance inédito de Jorge Amado, romance nascido de um conto, detalhe marcado aqui, tanto porque seu autor fez questão de explicar a natureza que deu origem ao seu texto com o gesto de apresentar ao leitor o referido texto que o impulsionou a ordem assumida pela obra. 

Ao trazer a escrita-matriz do romance no final, o romancista incorpora a visão de que não há narrativa, no atual contexto, produzida ao acaso e sim produto de um extenso trabalho de criação e lapidação da linguagem. Conclusão nascida entre a leitura do romance de Carlos Emílio e de outro romance, este do António Lobo Antunes, Não entres tão depressa nessa noite escura; lembro que o escritor português também incita seu leitor nessa mesma direção quando conclui o romance com o que pode ter sido seu ponto de partida: uma crônica. Outra condição nascida dessa e sobre a qual os dois escritores têm plena e coerente convicção é a interseção de gêneros, destituindo-os das determinações baseadas no isolamento e fechamento pela compreensão de que produtos de linguagem, e essa tem sua manifestação volátil, não são produtos acabados ou modelos estanqueis. Isto é, não se trata bem de uma destituição, trata-se de uma restituição à natureza inacabada do texto e sua diversidade de relações mantidas com outros do ponto de vista formal, estético, temático etc.

Além de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha, para pensar o contexto do romance brasileiro, o contato com este romance de Carlos Emílio logo lembrará no leitor (claro, se tiver lido) nomes com Luiz Sérgio Metz (Assim na terra) e R. Roldan-Roldan (Litterata ou o doce sorriso do macho satisfeito) – não pelo aspecto metaficcional dos dois mas  pela qualidade como reinventa o idioma (numa relação entre prosas, o primeiro mais que o segundo); nesse mesmo grupo é possível anotar Paulo Leminski (Catatau) e Hilda Hilst (toda a prosa). Essas considerações não tomam o trabalho integral de Carlos Emílio, porque autor de outras importantes obras, certamente, e este Maria do Monte traz outras perquirições com o material narrativo que o coloca em relevo entre os títulos citados. 

Uma delas, reside na maneira como esse escritor se exercita no território da criação: a linguagem do romance ora lido se deixa contaminar de maneira muito sadia (porque é a própria efervescência do tema que o sustenta o que transpira pelos polos da palavra) por uma exuberância de toque tropical, um ritmo caudaloso capaz de inundar os sentidos do leitor, que são únicos e deixará qualquer aproximação com outra obra cair no torvelinho das especulações gratuitas. Sua obra, ainda pela força criativa que se assume, é uma confirmação de que essa linha da nossa literatura não padeceu com os nomes aqui citados; ela ainda se mantém viva, ativa, e do que precisa é seu reconhecimento como um trabalho fundamental, porque a literatura não pode deixar de cumprir uma violência contra a língua, porque é uma das suas funções, tal como recorda Umberto Eco, oxigená-la, fazê-la forma viva e não mero produto de uso.

Se o exercício não-gratuito com a linguagem é aquilo que o leitor primeiro avista como o de melhor na composição de Maria do Monte, há os artifícios textuais, como a apropriação de outras narrativas, e o tom genesíaco que reintegra o literário com os aspectos míticos que finda por selar de vez esse trabalho de Carlos Emílio como um dos mais interessantes da cena contemporânea brasileira. Os verdadeiros leitores estarão bem-acompanhados com essas páginas que é um puro retorno ao estado de êxtase com a palavra porque o modo de dizer de Carlos Emílio é de integrar a linguagem ao seu estado mais denso: o de imagem.

O leitor comum certamente procurará uma linha narrativa segura pela qual possa se fiar, mas ela não existe. O que existe são lapsos que produzem uma série de perquirições da narradora, Maria do Monte, a que reconstrói uma história possível mas não-criada (ao menos no sentido real sugerido pelo título) pelo autor de Capitães da areia. Carlos Emílio finda por se aproximar do livro inexistente de Borges, inexistente no sentido do objeto, o que não afasta esse romance de ser também um exercício sobre o próprio romance.

É óbvio que entre a reflexão que poderia reduzir Maria do Monte apenas a um livro sobre um livro que não existiu, o romancista elabora toda uma trama que não se refere somente sua posição de autor no trabalho de reelaboração de um livro-possível mas também do próprio Jorge Amado, o autor, de fato, desse não-livro ou livro que se perdeu carregado por toda a diversidade de personagens e recriado de maneira oral ou imaginária, como se num retorno às engrenagens que poderiam ter lhe servido à composição da obra possível. Maria Monte, a que faz as vezes do autor, é o próprio Carlos Emílio, mas Carlos Emílio não é Maria Monte. Essa condição, obviamente, é a responsável pela construção de uma narrativa que exige do leitor o um trabalho de recriação palavra a palavra das possibilidades do narrado.

Ao citar Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e Mário de Andrade, esta leitura busca integrar o nome de Carlos Emílio no rol dos escritores do chamado realismo fantástico, estética a qual terão vinculado apenas como uma vertente da literatura da América de língua espanhola, mas se esquecem sempre dos nossos que, se não praticaram-na abertamente, tal como Emílio, se assumem de maneira muito legítima como seus precursores: Rosa com o seu sertão forma em toda parte, Cunha com seu encantamento pela força da natureza e a descrição de suas formas de maneira tal como percorre o fluxo da narrativa de Maria do Monte e Mário de Andrade por toda força inventiva na construção de uma epopeia genuinamente brasileira.

No mesmo instante requer reencontrar com a obra de Jorge Amado através de outro prisma que não o do realismo social ao qual sempre esteve associado pela crítica. Isto é, não seria este texto do escritor cearense uma maneira de reinventar também certa face já gasta de um dos nossos maiores ficcionistas? E se visitarmos um dos romances de Jorge Amado considerado uma das obras de maior cunho socialCapitães da areia, não poderíamos chegar a uma resposta para essa inquietação que subjaz o texto de Carlos Emílio? Basta o correr do romance para que possamos perceber que o herói criado por Jorge é totalmente clivado, no sentido de atravessado, pelos liames de seu espaço, carregando consigo, inclusive, no seu próprio signo de identidade, o nome, as marcas do que o fará o líder-condutor do grupo de marginalizados. Nos referimos à alcunha “Bala” advinda do fato de ter sido o seu pai assassinado, fator que desencadeia na personagem seus próprios rumos na diegese. A “bala” que ele carrega no nome é um termo-símbolo que estabelecerá a ligação entre suas ações e as do pai, mas, é esse termo também o que o confunde com a Salvador, cidade emulada pelo narrador como uma transfiguração da cidade histórica a que primeiro se refere o escritor.

Carlos Emílio ao desenhar sua figura principal, Maria do Monte, funde igualmente sua personagem com espaço, e ora não é mais a puta, mas a própria Bahia de Jorge Amado, composta da mesma força tropical que emana da terra. E talvez o mais interessante de considerar nessa construção é como a temática de cariz social geralmente negada pela crítica do romance fantástico se manifesta de forma atravessada no romance. Essa mulata, de corpo cobiçado e menos ilhado do mundo, é a Bahia ou não, aquela cobiçada de quando do período de exploração colonial do país? É ou não a mulher sob o jugo da força masculina e um adendo para se refletir sobre a violação do corpo?



Maria do Monte é uma narrativa em que o fenômeno da linguagem se impõe como síntese-simbólica do mundo; ela é desdobrada numa dinâmica de ritmos e sensações, mas não estará livre dessa determinante sócio-histórica, por mais que o escritor lapide da maneira como lapida Carlos Emílio a palavra. Nessa caudalosa corredeira de impressões, este é um romance que incursiona pelo espaço mítico de suas próprias raízes e o reanima através da expressão lúdico-sensorial da existência; a narrativa fantástica bebe em simultâneo da própria realidade e da força da poesia. E ambas são compostas de matérias muito semelhantes, afinal, o imaginário ou o poético alimenta a realidade mais comezinha e vice-versa. Pela maneira como engendra a palavra e a linguagem, este romance, mira contra a conveniência das formas e reimprime o ar encantatório de uma realidade que desde a consolidação do pensamento racional se tornou amorfa e destituída dos extensos labirintos animados pela força imaginativa.

A narrativa de Maria do Monte tem um tom genesíaco de fundação do mundo, de fundação de um livro, aqui uma e outra coisa as mesmas. Carlos Emílio lapida palavras como quem quer emoldurá-las como símbolo do que nos tem a dizer; e o que nos tem a dizer é que a realidade não é apenas essa camada complexa mas condensada como forma simples, há entre os fios que a constitui outras proezas, outras forças e é matéria da literatura revelá-las – eis um dos textos mais potentes da nossa literatura brasileira recente.

***

(fragmento do romance)

O nome vagueava num pequeno estrondo inócuo num estojo aéreo inalcançável e sem sequer os mais diminutos contornos para lá das nuvens mais próximas à cabeça cujos cabelos já não cantavam suas dissipações com a exuberância dos trópicos agora recessivos, lacrimejando suas intermitências de olhos castanhos entre os interstícios de reflexos cardíacos encapsulados de uma clareza de astronave zaolha. A sub-nave azul e profunda dos joelhos pensava suas viagens além do mar através do suor contábil pelos dias tronchos. Escusos modos de viajar ondulado sem planisfério na mente. Segregados recipientes das coisas mais guardadas dos ventos. Amoldações. Repentinas visões de cisternas vítreas perdidas, os joelhos vocais de pele visionária com os seus internos céus, os seus vitrais ósseos confusos e direcionais que atraíam dos pântanos urbanos ao derredor e pela tela difusa e espiritual da maresia os estalos mais ritimadamente coerentes com os impulsos estelares. Triturando-se magnificamente dentro destes joelhos atentos e ferventes a todos os mundos, poços sensóreos de flutuantes abarcações, zonas recônditas de seu corpo para o recebimento delas, as vozes e a filtragem dos corpos invisíveis transístores, os gemidos mais ígneos dos desejos de todos os viajantes, suas mentes ali dentro amassadas, empurradas vorazmente para dentro, passageiros líquidos embutidos misturados como as cores pretendidas na lua. Eram o lugar de atração das coisas mais gritadas das chuvas, mais desejadas dos montes, mais intuídas das ilhas, mais esmigalhadas do luzir-sentir. Todos eram atraídos para ali, para aqueles joelhos de pele negra bem vivos, de juntas quase extraorbitalmente mandibulares como extensos litorais virados ao contrário, ali invertidos e miniaturizados, espaços de conteúdo  que eram recipientes lendários para todos os "parentes" circulares deles, os que neles viajavam quentes, silenciosos e eternos. Os meio enormes ermos joelhos evoluindo de ouro, os joelhos dela eram trombras ecoativas de transporte, eram cérebros de drenagem  central, tambores ósseos de conteúdo de água alquímica dos lampejos das têmporas mais atentas a eles de todos os mundos e cercanias vindouras. Massageados por mim durante toda a tarde oleosa enquanto eu a ouvia contar por sua voz de vapor gradativo o que acontecia e que já acontecera, as minhas mãos ásperas concentravam e moldavam a preparação de todas as viagens que ela rabiscava com sua voz enriquecida pelo calor dessas minhas múltiplas mãos simultâneas entrelaçadas mais buscadas pois que eram muito mesmo minhas mais fortes mãos arrancadas das distâncias mais ansiadas talvez do mais alto dos céus, alisando e massageando untando esses joelhos díspares disparados provocados, eriçados, irritados, sensibilizados, percutidos até o ponto magma de entoação geral, captação por massagem astrológica dos seres neles tão bem atraídos e contidos, seres antes soltos e dispersos, agora ali dentro bem prontos e potentes, mergulhantes filamentos quase incorpóreos pelos poros reabertos cintilantes, joelhos gritando água relampejante de espelhos estonteados, joelhos proliferantes, joelhos com pontos estelares, joelhos coruscantes, firmados para todas as mentes em sincronia, atentas à enorme e universal transversal massagem cósmica como se por toda abóbada da noite voraginosa completamente estrelada paraumentada! Joelhos solares agora acendidos, duas grandes luzes redondas duplas, faróis-olhos, templários joelhos solares, esponjas captadoras de mentes organizadas em sincrônica atenta espiral meditante. Por  toda a cidade piscando as mentes em suas ladeiras, sótãos, salas, subterrâneos, calabouços, terraços, varandas em perambulações semeantes as mentes ultrapassando-se a si mesmas ali congregadas num furor entrelaçado de assobios luminosos, num entronizar de zumbidos espumosos, tudo falantepiscantante nestes joelhos os quase próprios olhos do sol, em amontôo ritual, joelhos de vento soprador como grandes fornos para assar decibéis navios de pão recém-descidos das nuvens que em vez disso dissolviam abrasadores. Agora todo o casarão repercutindo iluminado pelas lanternas vivas dos joelhos flutuantes além do vermelho negro da pele parabolicamente ali inflados de todas essa entrelaçadas mentes-pisca-mentes concentradas neles da velha e secreta confraria dos construtores dos astronavios, todas as mentes libertas num elo, vagantes luzindo ardentes em seus joelhos, imensos sóis condutores subterrâneos da cidade de Salvador da Bahia. Os joelhos cantantes de Maria do Monte, direcionais dos astronavios, das herméticas embarcações entonadas, dos astronavios barrocos que desde aqui, desde Salvador antiquíssima, transportaram intemporalmente através  do infinito mar farfalhante de prata os primeiros viajantes coloniais, até o distante e marinho planeta Vênus, estes joelhos clarabóias de seres soprados, espaço repleto para a missa cerimonial dos torvelinhos, dos seus faróis de luz ancorada...

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