quarta-feira, 15 de junho de 2016

Há uma luz no fim do túnel. Um romance profissão-de-fé no Brasil



Outros cantos, de Maria Valéria Rezende, foi escrito em 2014 e publicado, dois anos depois. A escritora que recebeu o Prêmio Jabuti no ano antes da aparição deste livro é, sem falsa modéstia, um dos nomes que integram a breve lista dos nossos melhores escritores contemporâneos. As razões para isso são várias: trata-se de alguém interessada em compor uma obra idiossincrática no vasto território das literatura nacional ao mesmo tempo em que busca um diálogo coerente com as principais linhas de força da nossa tradição; suas narrativas estão marcadas pela força da criação; não são obras isoladas no mundo da linguagem, mas sempre integradas à diversidade de temas que circulam foram do universo de tinta e papel; entre outras. Antes de Outros cantos, escreveu Quarenta dias (destacado romance no ano do Jabuti), O voo da guará vermelha, Vasto mundo e diversos outros títulos, entre contos e livros infantis.

O livro em questão é marcado (e eis outro traço distintivo de sua obra) por uma linguagem simples e a convivência com o material narrado, todo ele como se o produto da minha infância no sertão, vivendo e acompanhando de perto o esforço pela sobrevivência, levou-me a alguns lugares transitados pela memória quando li A cabeça do santo, de Socorro Acioli. Nasce com o romance de Maria Valéria Rezende uma relação de afeto com essa obra tal como se deu na leitura de Vidas secas, de Graciliano Ramos, O quinze, de Rachel de Queiroz, ou Fogo morto, de José Lins do Rego – para citar alguns dos grandes romances da nossa literatura aos quais posso, pela liberdade concedida ao leitor, filiar o texto de Maria Valéria Rezende, seja pelos temas e situações aí evocados, seja pela retomada de uma linhagem literária, ouso dizer, das mais profícuas no Brasil.

Espécie de road novelOutros cantos combina o rico trabalho da descrição e do relato, o apagamento da ação pela manifestação da atividade psicológica, e constrói uma narrativa só possível de ser determinada através do uso de uma metáfora oferecida pelo próprio romance: a de fabrico, tessitura e tintura dos tecidos usados na feitura de redes. Isso porque há duas linhas principais, os punhos: a da viagem de retorno da personagem narradora Maria ao interior do Nordeste para uma conferência patrocinada pelo sindicato dos trabalhadores rurais sobre a influência da televisão na vida das pessoas desde sua chegada à contemporaneidade e a da memória de quando fez esse mesmo percurso há quarenta anos para servir como professora do Mobral, um programa do governo lançado como um facilitador na árdua tarefa de desfazer os altos índices de analfabetismo no Brasil.

Como toda atividade mantida pelo fluxo da memória, as duas trajetórias de Maria são tomadas por uma série de outras vivências suas ao redor do mundo, o que dá ao tecido construído outras colorações. Outros cantos constrói-se pela tessitura contínua de temporalidades, além de recuperar a necessária experiência do vivido como matéria para a narrativa num trabalho que sustém a invenção não como atividade final mas ordenação do narrado. Maria Valéria Rezende lida, assim, com ferramentas raras na literatura contemporânea, seja o tema, seja as peças utilizadas na construção do narrado.

Sua narradora, espécie de alter-ego da escritora, mantém ouvidos e olhos muito atentos ao que se passa e é sempre tomada de uma forte opinião crítica acerca das situações vividas; não é uma observadora passiva, mas alguém que se questiona acerca da maneira como a humanidade é adestrada para acomodar-se às situações nem sempre o melhor da vida: é assim que denuncia as atividades da política na manutenção de um status quo social favorável sempre às mesmas linhagens, a violência contra mulher, a ordem do manda quem pode e obedece quem tem juízo. 

Soma-se a essa visão desassossegada da realidade, sua opinião crítica de como uma parte escusa do povo brasileiro alcançou outra perspectiva de vida pela série de transformações possibilitadas por uma pequena mudança no curso da ordem política do país e muito daquilo que é sua fala para a conferência irrompe toda vez que se vê confrontada, no atual contexto, pela presença massiva da parafernália digital comum em todos os lugares do Brasil. Quer dizer ampliou-se acessos, mas é preciso não se deixar levar pela amnésia sobre o passado e atentar que existir é uma contínua busca e inquietação, nunca uma acomodação gratuita ante o vivido.

Por essa perspectiva, é muito visível a releitura que Maria Valéria Rezende faz sobre a relação, marcadamente lida como um dos aspectos da modernidade enquanto estética literária, entre o tradicional e o moderno. Sua narradora não se decide pelo tempo do passado porque reconhece noutra margem o ganho de qualidade de vida recebido por essa gente que sobe no ônibus vez ou outra ou pelo contato com as casas na beira da estrada. Mas se coloca sempre em suspeita ao pensar que o uso desenfreado da tecnologia da comunicação é o grande mal desse novo tempo e um dos responsáveis pela carência do espírito crítico, reflexivo, bem como um elemento favorável ao achatamento da cultura pelo apagamento de toda a diversidade que experimentou de quando esteve pela primeira vez no interior do Nordeste.

Dessas observações sobre Outros cantos, além da leitura que problematize a lugar da modernidade pela marca da tradição, é possível visualizar a leitura política que a escritora imprime pelo olhar da narradora sobre a transformação do sertão marcado pela exploração, o trabalho árduo da gente simples para os senhores, e pela pobreza num lugar tomado por outra via da qual toda civilização parece não se deixar contaminar: a do consumo.

Quando se refere ao sertão do passado, Maria é embalada pela capacidade do sertanejo de convívio com o exíguo, e ao reavivar as linhas da política do favor e da submissão, não deixa de compreender esse lugar multifacetado pela riqueza cultural e a integração comunitária nos ritos de celebração da vida. Nesse último aspecto a ideia de cantos – que nesse caso tanto pode se referir a outros lugares, sobretudo estes sempre escondidos aos olhos das outras gentes – para, no sentido estrito da palavra, dizer outras vozes sobre um lugar geralmente definido pela visão única da miséria e do vale dos desvalidos. Isto é, a narradora interessa-se ainda em desconstruir a imagem monolítica de um passado pintado principalmente pela mídia sulista sobre o interior do Nordeste e destacar a força, a beleza e a riqueza da cultura popular como possibilidade de reafirmação de um povo ante o horror e a opressão.



Além desse interesse crítico – já suficiente para fazer desse romance uma leitura obrigatória recomendada principalmente aos néscios sobre determinadas perspectivas que hoje se levantam escancaradamente pelas redes sociais e pela imprensa marcadamente elitista e interessada em preservar seus interesses individuais, aos néscios da renovação do olhar sobre uma parte do Brasil ainda hoje erroneamente interpretada – é preciso sublinhar outro elemento aí em relevo: a linguagem. Ao combinar, algumas vezes o traço do popular, com o da forma mais elaborada, Maria Valéria Resende convence o leitor sobre a diversidade dos núcleos que dão forma ao romance.

No âmbito do segundo traço é encantadora a maneira como dá à palavra uma condição luminosa ou como transmite através da linguagem verbal a tessitura sugestivamente colorida, quase fotográfica, das imagens recuperadas pela memória. Do primeiro traço, atenção para a presença constante das histórias vividas pelo povo e as do seu imaginário narradas com a mesma força com que era possível ouvir dos mais antigos confirmando que veio desse registro a diversidade de vozes assumida pela literatura latino-americana, como a conceituada de fantástica ou de realismo mágico; ou não isso é a história aí lembrada do bebê nascido homem pela metade e regado com água de chuva até brotar a outra metade como fêmea?

Outros cantos é um painel significativo de um Brasil representado escassamente pela literatura e por isso mesmo reveste-se da mesma condição do que foi a literatura da chamada Geração de 1930: dar a ver sobre esse retrato pouco falado ou expresso apenas de maneira caricatural por setores que não vivenciam / vivenciaram o lugar e as situações sociais e culturais a fim de melhor compreender sobre as transformações ainda que mínimas passadas por um país que costumou-se ser, numa parte, a cópia fiel da civilização, e noutra, a da barbárie, muito embora, essa divisão seja mais uma situação imposta que a realidade em si, toda ela, múltipla e multifacetada. É essa condição caleidoscópica de um país em plena efervescência, mantido pela resistência de um povo que nunca ousou se redimir ante a realidade mas fazê-la de outra maneira o que testemunha esse romance. Uma leitura fundamental para reencontrar a face oculta de um país e compreender que as lutas e as utopias não podem morrer, que elas precisam se ressignificar a fim de afirmar outros impulsos rumo a uma condição melhor de existir.

***
(fragmento do romance)

Não quero mais correria, pressa, velocidade... Ultimamente ando irritadiça e exausta, resisto, mas sou sempre arrastada pela pressa dos outros desde que a gente passou a viver, se mover, se informar, pensar e se comunicar com o máximo de velocidade possível segundo os diários e ruidosos lançamentos de novas geringonças eletrônicas, prometendo cada vez mais velocidade. Não é só o fas-food no estômago, é o fast-food no cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a me avaliar pela minha rapidez de resposta e de atualização. Ave! E quem pode, assim, continuar a ser gente, ter juízo e saúde? Rapidez obrigatória não combina com reflexão, raciocínio complexo, construção de argumentos fundamentados, avaliação crítica e honesta do argumento alheio, recuperação da memória, verificação conscienciosa das informações recebidas, pensar e julgar com ideias e valores coerentes e abrangentes. Sem isso, não é possível o debate honesto e profundo de coisa nenhuma, a intolerância e a violência se espalham por aí. Afinal, desde sempre o argumento mais rápido em qualquer disputa parece ter sido a força, o golpe, a violência, desde o tacape até o drone bombardeiro. Parece que estou reformulando a palestra a fazer quando chegar ao fim desta travessia. Um sindicato de trabalhadores rurais, aliado a outras das muitas organizações populares hoje espalhadas sertão afora, como sonhávamos há quarenta anos, convocou-me a ajudá-los numa reflexão crítica sobre o pensamento dominante e a influência da mídia televisiva desde a chegada da eletricidade. Querem aprofundar as principais questões, a partir de sua experiência, para elaborar e lutar por uma proposta educacional adequada à realidade sertaneja. Alegram-me, fazem-me reviver, esses convites, provas de germinação das sementes tão custosamente metidas nas covas do passado. Mas não, agora não quero pensar nessa tarefa e hoje não tenho pressa de chegar. 

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