sábado, 23 de maio de 2020

Esta bodega permanece fechada



Só hoje, depois de avançar com o trabalho de revisão de alguns materiais editados em outros projetos online, me dei conta que esta Bodega estava jogada à poeira e às traças desde setembro de 2018. Quase dois anos sem novos textos. O tempo é mesmo cruel. Como é um espaço que continua a ser visitado, achei de bom tom escrever esta nota para deixar uma explicação e uma decisão que me custou uma manhã inteira de interrogações: não tornarei tão cedo a divulgar textos por aqui. E aqueles que são novidades em relação ao Letras in.verso e re.verso, onde minha atuação é permanente desde há 13 anos, passarei a reproduzi-los neste blog. Por enquanto, os textos que chegaram a circular por aqui permanecerão online. É ainda qualquer sopro de esperança que entrecorta a decisão agora registrada.



Obrigado pela atenção,

Pedro Fernandes

terça-feira, 25 de setembro de 2018

O anel do general e a literatura como inquietação de Selma Lagerlöf


Por Pedro Fernandes



“Tinham se embebido de medo de malfeitores com o leite de suas mães; tinham sido ninados até dormir com cantigas sobre bandidos. Consideravam todos os ladrões e assassinos como abominações e demônios, que não deviam mais ser considerados seres humanos. Não achavam necessário lhes mostrar qualquer compaixão” – a reflexão é do narrador de O anel do general na altura em que acompanha, pelo levantamento dos ânimos do pequeno povoado de Broby, o julgamento de três acusados de assassinato de um jovem para o roubo da peça de extrema valia que ocupa do título ao núcleo principal da narrativa. O excerto é trazido aqui porque justifica em parte uma compreensão dos elementos motivadores da obra. Noutra passagem, como se num arroubo metanarrativo, o narrador interpõe: “A caneta cai de minhas mãos. Não é inútil tentar escrever essas coisas? Essa história me foi contada ao crepúsculo à luz de uma fogueira”.

Selma Lagerlöf é, por assim dizer, quem se embebeu e foi embalada pelas histórias de seu povo e delas forjou alguns dos motivos de suas obras; no caso dessa novela, não são as narrativas sobre malfeitores e sim sobre fantasmas, cuja gênese remonta a um mistério ora tornado preocupação ora reflexão universal desde sempre – a morte. O que pode ser uma boa morte, o que se passa, se existe, no mundo além, qual a relação dos vivos com os que se foram e o contrário, quais os significados de existir e não mais existir, entre outras questões, têm servido de maneira muito rica ao imaginário popular. Muitíssimo do que corre no interior da tradição oral, inclusive, circula de maneira diversa no mundo inteiro, atestando, o que é afinal, a universalidade das inquietações humanas.

Se as histórias de fantasmas determinam a base narrativa de O anel do general, elas não constituem, mesmo que aí se apresentem, o seu tema principal como é noutras situações da obra de Lagerlöf: o seu romance que deu origem a várias adaptações cinematográficas, O cocheiro da morte, por exemplo. A novela motivo destas notas, por sua vez, encontra raízes nos valores que as histórias da tradição oral popular tratavam de veicular; nesse caso, a natureza da ambição humana, bem como suas consequências, e a necessidade do respeito para com a memória dos mortos. Todo imbróglio narrativo se reveste do tom fabular para contar uma história de exemplo. Isto é, se no romance antes citado é a lenda escandinava segundo a qual o último homem a morrer no último dia do ano torna-se o cocheiro predestinado da Morte, nesta novela, se recorta uma das muitas histórias associadas a um tal General Löwensköld.

Feito homem de grande importância, ao menos aos seus olhos, para o Rei Carlos XII, o general recebera como súdito um anel de grande valia pelos feitos durante os tempos de guerra e decide, pouco antes da sua morte, que seja sepultado com o objeto – uma maneira de ser reconhecido no reino eterno pelo monarca que o distinguiu. Tornado figura de histórias variadas, todas que reforçam o caráter benevolente, o espírito guerreiro e vitorioso, a força e o valor da joia que levou consigo para o túmulo, Bengt passa a ser não apenas uma figura mítica entre os da região, mas cobiçada. O anel, logo, só durará em sua mão o tempo necessário de se apresentar a ocasião que faz o ladrão.

E a ocasião é dada meses depois, quando o mausoléu do general é aberto para receber o esquife da neta; um fazendeiro de Olsby, Bård Bårdsson, que participa dos rituais fúnebres da pequena descobre sobre a inoperância da segurança dos Löwensköld, que o mausoléu ficará aberto durante toda a noite porque sendo domingo nenhum trabalhador deixará seu descanso sagrado pelo trabalho. A situação leva a personagem a se sentir tomada de inquietação pela joia que jaz com o general. Da inquietação à obsessão logo transmitida para sua mulher, e da obsessão à ambição, o roubo do anel pelo casal de Olsby inaugura o mito pós-morte de Bengt: da sua condição de alma vingativa à de fantasma em desassossego entre os da sua propriedade.

A novela de Selma Lagerlöf é magistralmente bem construída. O enredo é, da investigação ao périplo do anel entre os ambiciosos ou tomados por certa força sedutora e destrutiva da joia, constituído por um conjunto aparentemente diverso de narrativas intercaladas por momentos de reflexão do próprio narrador que engendra paisagens nostálgicas sobre um tempo ora perdido na memória ora refigurado pelas tintas da fabulação e reflexões sobre as histórias aí engendradas. Tal como se passa na realidade do narrado, o anel aparece e desaparece nas camadas do texto, o que, tal como nos romances policiais, induz a curiosidade do leitor para descobrir os rastros de sua presença.



Apesar da linearidade temporal, as narrativas estão desenvolvidas em torno do roubo do anel do general, as situações estão em unidades de tempo bastante distintas – começam em março de 1741 e arrastam-se até à terceira e quarta geração das personagens; a joia atravessa assim um tempo caracterizado pela crendice popular que deposita no sobrenatural uma resposta para as situações cotidianas ao tempo de apagamento do senso-comum pelo ceticismo da pura razão.

Quer dizer, de alguma maneira O anel do general recupera nossa própria história do pensamento, do pecado original – a tentação aos Bårdsson remete-nos à de Adão e Eva que resulta na expulsão do casal genesíaco do paraíso – à discussão ética, da lei e do direito, patente na pergunta de Bård ante o interesse em pegar a joia do general: “que mal pode haver em tirar de um morto algo que ele não quer?”. Nesse ínterim o leitor assiste da vingança maligna de um espírito ensandecido pelo roubo capaz de ações que destroem a pacata vida dos ladrões à transformação de Bengt Löwensköld numa alma penada cuja presença não causa nenhum espanto aos habitantes de Hedeby.

Em toda parte, a ambição se faz o tema principal nesta novela. Dos Bårdsson, quem primeiro dedicam-se a explorar a ocasião propícia ao roubo e levam consigo o anel do general ao próprio comportamento do capitão Löwensköld; seu pai, no passado ambicionara o reconhecimento da corte e o alcança depois de muito esforço, mais tarde, o filho não afeito às honras do pai almeja construir outro lugar no qual prevaleça sua figura. Aqui acontece algo importante de apresentar, antes do fim deste texto.

Acompanhamos duas faces da mesma personagem: o capitão, apesar de deitar vista grossa para o passado heroico da família, não consegue o tal lugar de destaque apenas pelo discurso de que no seu tempo as preocupações são outras. São as histórias do avô – aumentadas ou não – as que dominam o pensamento e o interesse dos filhos. Tomado por certo ciúme, a natureza dessa personagem sofre então uma transformação; do ideal pacificador passa ao do guerreiro-vingativo quando é tomado pelo agravante sempre desprezado do roubo do anel de seu pai. E é para inventariar uma imagem heroica que emprega toda força e energia em recuperar a joia. O mesmo também se passa no além: o general, até então sempre benevolente com os seus precisará o medo arcaico aos de casa para que seu objeto de consolo retorne ao lugar de sua pertença.

Isto é, estamos inseridos numa zona de variações, cujo enredo fabular não se resume apenas ao encadeamento crime, punição, arrependimento e recompensa. Tampouco no jogo de oposições bem / mal. Selma Lagerlöf mostra-se interessada em compreender a natureza humana a partir de seu interior, estabelecendo como justificativa que esta é, desde a origem dos tempos (e depois dele, ironicamente), penosamente marcada pela inconformidade e a ânsia de poder. Nesse ínterim, é que se determinam as compreensões de cariz empírico e mítico sobre a ordem das existências qual se apresenta nas narrativas populares, a fonte de criação da escritora sueca. As semelhanças, entretanto, param por aí. 

Sabedora de que a toda história oral de uma boca a outra se aumenta um ponto, Selma acrescenta que não tem a literatura o objetivo de simular um felizes-para-sempre ou mesmo imiscuir o medo e a determinação pedagógica nos leitores. Apropria-se da arte de contar bem uma história (fato inegável à tradição) para determinar que o caráter da literatura – se há algum – é do entretenimento. Essa compreensão não pode ser confundida com a ideia de passatempo ou de conforto ao espírito, mas de exercício criativo da imaginação e retirada do leitor para um território de inquietação. Mas isso é a principal das coisas que um leitor espera de toda boa literatura.

***
(fragmento da obra)

Sei muito bem que antigamente havia muitas pessoas que não conheciam o significado da palavra medo. Também ouvi falar de pessoas que gostavam de caminhar sobre gelo fino de uma noite só, e de outros que não conheciam prazer maior do que viajar atrás de cavalos em disparada. Houve, de fato, alguns que não temiam jogar cartas com o sargento porta-bandeira Ahlegård, embora ele tivesse todos os truques na ponta dos dedos e sempre conseguisse ganhar. E havia mesmo almas intrépidas que tinham a coragem de começar uma viagem numa sexta-feira ou se sentarem em treze à mesa.

Mas me pergunto se algum desses teria a coragem de usar o temível anel que pertenceu ao velho General Löwensköld de Hedeby.

Era esse mesmo velho General quem conquistara fama,propriedades e um título para os Löwensköld; e enquanto houve alguém da família morando em Hedeby, seu retrato ficava pendurado na grande sala de estar no andar superior, entre as janelas. Era um retrato grande, indo do chão ao teto. Olhando-o de relance, você poderia confundi-lo com o próprio Carlos XII, ali firmemente plantado no chão de xadrez, em seu casaco azul, luvas de couro de pelica e botas. Porém, numa inspeção mais próxima, você perceberia se tratar de um homem completamente diferente. 

Um rosto largo e rude de camponês surgia acima do colarinho do casaco. O homem parecia ter nascido para seguir o arado por toda a vida; contudo, apesar de sua feiura, ele dava a impressão de ser um homem sábio, confiável, um grande homem. Se tivesse nascido nestes dias ele seria colocado ao menos num juri, ou como diretor-geral de Conselho Municipal ou talvez até chegasse ao parlamento; porém, tendo vivido no reino do grande herói, ele saiu para a guerra como um soldado pobre e retornou como o famoso General Löwensköld, recebendo como prêmio da Coroa pelos serviços a propriedade de Hedeby, na paróquia de Bro.

Na verdade, quanto mais você olhasse para o quadro, mais você se reconciliaria com sua aparência. Você pareceria perceber que havia sido homens como esses que, sob a liderança de Carlos XII, araram o sulco entre a Polônia e a Rússia. Seu exército não havia sido composto de aventureiros e cortesões, mas de homens simples, honestos, como esse neste quadro, que haviam amado o Rei e o julgado digno de por ele viver e morrer.

Ao estudar o quadro, havia geralmente alguém da família Löwensköld para notar que não havia sido só a vaidade que levara o General a remover a luva de sua mão esquerda, de modo a mostrar o grande anel com sinete que ele usava no dedo indicador. Esse era o anel que ele havia recebido do Rei - havia apenas um Rei para ele - e era mostrado nesse quadro como um sinal de que Bengt Löwensköld era seu servo fiel. Ele havia sido forçado a ouvir muita censura amarga sobre seu soberano; houve mesmo quem aventurasse que, por sua imprudência e temeridade, ele quase levara o reino à ruína; mas o General lhe foi fiel em tudo. O Rei era um homem como jamais havia existido e aqueles que viviam com ele haviam percebido que causas mais nobres e altivas do que a honra mundana e o sucesso o obrigavam a lutar.

A mesma razão que levava Bengt Löwnsköld a mostrar seu anel no retrato fez com que quisesse ser enterrado com ele. E aqui tampouco foi uma questão de vaidade. Ele certamente não tinha nenhum desejo de se gabar de usar uma grande joia do Rei no dedo quando aparecesse na presença de Nosso Senhor e dos Arcanjos, porém ele esperava que, ao entrar no salão onde  Carlos XII estivesse sentado, cercado por suas armas, o anel lhe granjearia reconhecimento, de modo que ele passaria a eternidade próximo a quem servira e honrara toda sua vida.

Quando o caixão do General foi colocado na cripta funerária emparedada que ele mesmo havia preparado para si no cemitério de Bro, o anel estava a salvo no dedo indicador de sua mão esquerda. Muitos dos presentes lamentaram que um tesouro daqueles seguisse um homem morto a seu túmulo, pois o  anel do General era quase tão conhecido quanto o próprio General e igualmente famoso. Dizia-se que tinha valor suficiente para comprar uma vasta extensão de terra, e que a cornalina vermelha, com o símbolo real, não era menos valiosa. As pessoas todas concordavam que era generoso da parte de seus filhos não se oporem a seu desejo, enterrando seu tesouro com ele.

Se o anel do General realmente se parecia com aquele representado no quadro, certamente seria uma coisa feia e bastante incômoda para alguém usar hoje em dia; mas há alguns séculos seria grandemente estimada. Precisamos lembrar que todas as joias e receptáculos de metais preciosos, com muito poucas exceções, tinham que ser entregues à Caroa; que a nação precisava lutar contra o daler do tempo de Goertz* e a bancarrota nacional, de modos que, para muitas pessoas, ouro era coisa de que só se ouvira falar mas nunca se havia visto. Por isso o povo não podia esquecer o anel, tão inutilmente enterrado dentro de um caixão. Seu enterro ali era quase uma injustiça. Poderia ser levado para algum país estrangeiro, vendido por uma grande quantia e usado para conseguir pão para muitos que não tinham nada para comer além de palha e cascas de árvores.

Assim, havia muitos que ansiavam possuir o grande tesouro, mas ninguém seriamente disposto a se apropriar dele. O anel estava no caixão, com a tampa aferrolhada num túmulo emparedado, sob uma lápide pesada, fora do alcance do mais ousado dos ladrões, e ali acreditavam que ele ficaria até o fim do mundo.
* Após a morte de 
Carlos XII (1718), o Barão Goertz emitiu o daler, moeda sem lastro. Impopular, foi decapitado.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

"Hoje eu vou ser um durão", Éduoard Louis e a violência de todos nós

Por Pedro Fernandes



A literatura está repleta de histórias sobre a violência e a pobreza nos pequenos e grandes centros. Em princípio, as narrativas tristes cumprem uma tarefa fundamental à formação do campo discurso do literário: revelar à humanidade uma projeção de sua própria face, colocando no centro de interesse personagens e realidades silenciadas pelos discursos dominantes. Faz sentido se perguntar o que seria da história dos povos se um Victor Hugo não tivesse revelado a extrema miséria a que estavam condenados os franceses de seu tempo enquanto uma pequena parcela se refestelava às custas dos esforços dos miseráveis, ou como conheceríamos a pobreza e a exploração em Inglaterra, sem Charles Dickens, das mazelas impostas por modelos desastrosos como o comunismo na União Soviética nos vários livros que denunciaram os gulags ou o fracasso capitalismo com o retrato duro desenhado pelo escritor estadunidense John Steinbeck. As verdades oficiais, geralmente autoritárias e, por isso mesmo, fechadas apenas numa única linha de visão teriam prevalecido e possivelmente teríamos outra configuração do mundo e certamente mais cruel que esta.

Não é o caso de as modificações terem sido propiciadas pela literatura – até mesmo porque enquanto tais obras sobre a miséria ganhavam publicação os representados dificilmente tinham acesso a elas e que, utopicamente poderia favorecer o pensamento dissidente do discurso dominante; curiosamente, o próprio imperativo da pobreza priva aos representados de se verem. Mas, se no interior dos sistemas se forjam alguma estratégia de mudança, ainda que apenas no intuito de favorecer a própria face do poder dominante, em parte, isso se dá quando o problema é deslocado da margem para o centro. Que saberiam os do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil sobre a maneira como o poder pisoteava pobres e o condenavam à indignidade perpétua se não fosse o grupo de escritores da chamada literatura de 1930 deitarem a pena para revelar os vícios e os males impostos? Muitos advogam na tarefa de destratar a literatura e grande parte desse grupo pertence, curiosamente, aos setores que gostariam de impor ad eternum os seus gestos de dominação opressora.

Mas, atravessamos outro momento; ficou chato datar situações narrativas e sempre que se apresenta uma obra que não se queira universal logo ressaltam a dicção repetitiva alegando sobre a impossibilidade de ser literário o texto que ousa constituir uma intervenção às ordens de dominação. Um leitor de José Saramago, por exemplo, já terá escutado reiteradas vezes que sua literatura é pobre porque buscou se filiar a uma estilística do proletariado, fazendo-se além de repetitiva, apologética da ideologia comunista. E a pergunta roda ante falsas acusações do tipo que ignoram o que há de mais significativo – a criação: se a literatura não se apresenta enquanto contradiscurso, que outra expressão o fará? Ainda na lista das acusações, quando não se referem ao fator ideológico-político contradominante, preferem questionar os valores do literário com a acusação de que este exercício de denúncia da espoliação está superado no campo da criação ficcional.

Bom, talvez por isso, alguns escritores contemporâneos tenham decidido deixar de construírem universos que funcionem como distanciados de si para falar do que se passam ao seu entorno para se posicionarem enquanto persona de suas narrativas, como se dissessem aos acusadores, de que outra coisa eu poderia tratar na minha literatura se minha experiência, aquilo que em grande parte determina a criação, é esta e não outra. Não se trata de rondar os mesmos ultrapassados temas ou de colocar em evidência o discurso sobre a miséria que, aparente é que melhor vende porque parece existir na humanidade um espírito que se sacia e se compraz com a desgraça alheia. Não é nem uma coisa nem outra.

Os temas não são ultrapassados porque afinal a desigualdade, as imposições, as injustiças, os ódios, as misérias continuam as mesmas de sempre. Quer dizer, não as mesmas de sempre, porque se criaram mecanismos de segregação e novas ordens de dominação pela exclusão, o que faz da humanidade extremamente avançada nuns casos e duplamente obsoleta em outros. Ainda prevalece – estrategicamente melhores – as condições de injustiça porque agora são condições previstas e forjadas no interior da própria legalidade moral. Para que os discursos oprimidos continuem silenciados tornou-se voga os tribunais de exceção e as leis que advogam as verdades são instituições alimentadas pelos próprios interesses daqueles que advogam. Contra isso, a literatura ainda é uma alternativa. E se já não é possível falar-se ficcionalizando o outro ou se ficcionalizando no outro, este outro, produto da pequena evolução humana, já é agora possível de falar porque criou suas próprias condições e porque encontrou saídas pelas margens. Nessas saídas resultam alguma dose de esperança.

O fim de Eddy se filia, portanto, a essa rede de criações literárias que colocam em cena a própria existência de quem escreve. Corriqueiramente têm-na chamado pela mesma alcunha fornecida quando se tornou comum a escrita sobre o eu a partir do próprio eu – isto é, autobiografia. Mas, sem se aventurar pelas searas da discussão que cabem num texto como este nem nesta ocasião, é melhor pensar uma alternativa que se coloque fora ou pelo menos categoria talvez do autobiográfico, porque, embora seja o domínio do acontecido o que determina essas narrativas não são propriamente narrativas que tenham interesse de servir de testamento do seu autor.

O autor ficciona suas vivências e elas tornam-se objetos universais, aquilo que na ficção comum já acontecia – a realidade apresentada em Levantado do chão, por exemplo, para retomar o caso saramaguiano, é a do levante dos trabalhadores rurais sem terra no interior de Portugal contra os regimes de latifundiarismo, mas este romance é universal à medida que se torna em metáfora ou metonímia sobre outras diversidades de levantes sejam de trabalhadores rurais sejam de oprimidos – e tais histórias, sabe-se bem, estão em toda parte. É, portanto, necessário pensar até que ponto é possível continuar falando de autobiografia para uma forma de escrita que apresenta peculiaridades tão distintas do autobiográfico ainda que sua roupagem nos permita continuar acreditando na ideia de revelação do eu para o todo.

Pois bem, a partir das experiências vividas, seja porque passou por elas, seja porque ouviu de seus pais e daqueles com quem conviveu, em O fim de Eddy, a narrativa se propõe reconstruir os anos de infância a da adolescência de Eddy Bellegueule. Não se trata de uma narrativa cuja operação se dê por uma transposição do leitor a olhar com os olhos da criança ou do adolescente este passado que é recriado; é a visão de alguém que olha para o passado a partir de seu lugar atual. Mas, ao contrário do que se possa pensar não se deposita sobre essa história nenhuma nostalgia tampouco algum julgamento. Aliás, não sobra espaço para isso neste romance, porque a única coisa que parece restar a este narrador é uma maneira de compreender as razões que lhe fomentaram uma consciência desencantada sobre o passado. Eddy quer compreender-se como o modo de vida, as limitações de ordem diversa, não o levaram ao total apagamento como a outros. Quais mecanismos se constituem os destinos que a uns permitem encontrar a sobrevivência mesmo quando esta parece impossível de existir.



Há uma imagem que corre todo o fio narrativo de O fim de Eddy que funciona perfeitamente como justificativa a essa leitura: ela abre o romance e é a descrição da uma das ocasiões em que Eddy é espancado violentamente por dois colegas do colégio debaixo de toda sorte de xingamentos porque todos o tem como a bicha, o veado, a moça. Nessa ocasião, o narrador sempre lembra como buscava estabelecer estratégias de dissimular a dor e de encontrar o ar que faltava às narinas coalhadas de sangue. Em linhas gerais, pode-se dizer que é isto o romance: buscar ar quando o passado chega e o sufoca. Os hematomas psicológicos doem mais que qualquer dor física – alguns nos matam silenciosamente.

É a formação de uma consciência sobre si, sua sexualidade, seu corpo, o que leitor acompanha ao longo da narrativa. Para dizer que não há momentos felizes neste itinerário de pura opressão, restam os lampejos em que Eddy pode ser ele próprio, como quando se vê maquiador da amiga ou quando pode às escondidas travestir-se nas roupas da irmã ou ainda nos elogios enviesados que lhe chegam dos pais extremamente violentos de que tem na família alguém inclinado para o estudo e capaz de, no futuro, dar algum orgulho à família. Mesmo isso é pura descrição dissidente de qualquer vitimismo ou de qualquer emoção desbragada. Ao longo do romance somos levados a nos acostumar com o rifão que estas narrativas tentam desconstruir totalmente: Hoje eu vou ser um durão. Novamente vale reportar a cena mencionada no parágrafo anterior, quando sob a violência o menino Eddy prefere reprimir o choro e se rir dos agressores. Nada é mais duro que isso.

Édouard Louis é objetivo e não tem pudores para a construção de uma exegese da violência; esta se revela nas mais diversas frentes: no machismo que domina a todos do pequeno vilarejo suburbano de Hallencourt e que impõe suas regras contra homens e mulheres; nos preconceitos contra todas as minorias – deficientes, gays, árabes, pobres (as estratégias de segregação destes com os outros de condição um pouco menor); a do trabalho forçado que vitimiza a todos, pela saúda física em contínua debilitação ou pela saúde psíquica superada pela entrega desmedida ao álcool, única fuga possível de superar esse esmagamento social padecido por todos; como tudo isso se traduz em comportamentos que vão da dormência de humanidade à total ausência dela. Enfim, o passeio não poupa (e por isso também de forma violenta) a saúde do leitor.

A grande estratégia narrativa de Édouard Louis é estabelecer a ideia de como o discurso do outro se torna um sistema regulador das vidas e das condutas individuais. Por alguma razão ficamos balançados a acreditar, por exemplo, que os pais de Eddy teriam outra visão sobre o filho e sua condição aberta para as sensibilidades, se não fosse o julgamento que sempre serve de dominante nas estratégias de exercício de poder: é sempre o que o outro diz, o que outro julga, que abre a preocupação sobre a repressão dos trejeitos femininos de Eddy ou dos gostos duvidosos que se opõem aos esperados do que o discurso diz ser de um homem. Prova disso é quando o menino desiste da escolinha de futebol ao descobrir que não conseguiria usar o banheiro coletivo e o pai escolhe uma mentira a fim de justificar ao professor de educação física que o filho prefere ficar em casa a ver televisão; ou a declaração de amor do pai pelo filho, numa das várias crises de coluna, e que Eddy só consegue sentir repulsa por interpretá-la como um assédio.

Por entre o processo de descoberta de si, passa uma interpretação seca e sisuda (propiciada pela objetividade do relato) da realidade do vilarejo. Aos olhos do narrador este é o lugar condenado à repetição eterna dos mesmos modos de ser e estar no mundo porque todos parecem que estão carcomidos por uma espécie de condição natural perversa que os domina ao ponto de cegá-los para o mundo fora daí. A única coisa que parece lhe admirar – e talvez seja o impulso que o permite suspender a ordem das coisas – e talvez a única das esperanças, que de tão distantes não se mostra como tal, é a contínua vontade da mãe em não sucumbir à miséria e à violência. A narrativa, a todo momento sublinha as alternativas encontradas por ela para garantir o sustento numa família de sete bocas, como fabula situações a fim de não revelar diretamente para os filhos a verdadeira condição da família, nas histórias que conta do passado que poderiam resultar noutro destino que não o de mulher casada duas vezes e apenas dona de casa, profissão sobre qual tanto faz questão por ser reconhecida.

Por fim, ao revelar este universo movido pelos ventos dos dissabores e da danação, O fim de Eddy, denuncia quanto os Estados e o modelo econômico que os definem mais fracassaram que acertaram no que devia ser preocupação comunitária fornecer alternativas decentes e verdadeiras de reduzir as extremidades dos fossos em parte determinados pelo próprio sistema. E se estamos falando sobre um país que carrega certo mito de zelar desde cedo por princípios que nas nações mais jovens ainda se engatinha na sua direção, os princípios da igualdade, liberdade e fraternidade, o que dizer das periferias destas? Édouard Louis revela nosso lado mais abjeto e que habita todas as partes: o de saber sobre nossos males, conhecermos alternativas e esperarmos que os outros pereçam na indignidade. A periferia francesa é como toda periferia: formado por aqueles que o Estado escolheu como refugo.

Não há lição mais cara para este século que se inicia: se não formos capazes, parece nos dizer, de renovar as dimensões que nos determinam como humanidade poderá não existir um século depois deste. Pereceremos na absoluta barbárie. Não falta muito.

***
(fragmento da obra)

Tornar-se

Eu me lembro menos do cheiro dos campos de colza do que do cheiro de queimado que se espalhava por todas as ruas do vilarejo quando os agricultores deixavam o esterco se consumir lentamente ao sol. Eu tossia bastante por causa da minha asma. Um depósito se formava ao fundo da minha garganta e no meu palato, como se o esterco evaporasse e se reconstituísse dentro da minha boca, cobrindo-a de uma fina película cinzenta.

Eu me lembro menos do leite, ainda morno por ter sido recém-ordenhado do úbere da vaca, que minha mãe ia buscar na fazenda em frente de nossa casa do que das noites em que faltava comida e nas quais minha mãe dizia esta frase Hoje à noite a gente vai comer leite, neologismo da miséria.

Eu não penso que os outros - meus irmãos e irmãs, meus companheiros - tenham sofrido como eu a vida do vilarejo. Para mim, que não conseguia me tornar um deles, era preciso rejeitar tudo daquele mundo. A fumaça era irrespirável por causa das surras, a fome era insuportável por causa do ódio do meu pai.

Era preciso fugir.

+ + +

Mas,a princípio, a gente não pensa espontaneamente na fuga, porque ignora que exista outro lugar. A gente não sabe que a fuga é uma possibilidade. Em um primeiro momento, a gente tenta ser como os outros, e eu tentei ser como todo mundo.

Quando eu estava com doze anos, os dois meninos saíram do colégio. O grande de cabelos ruivos começou um curso profissionalizante de pintura, e o pequeno de ombros caídos parou de ir sem que seus pais perdessem os benefícios sociais da família. A desapropriação deles foi, para mim, a chance de um novo começo. Se os insultos e as gozações continuavam, desde que eles não estavam mais lá a vida no colégio não tinha comparação com o que era antes (uma nova obsessão: não fazer o ensino médio no liceu ao qual eu estava destinado*, não encontrar com eles outra vez).

Eu tinha de parar de me comportar como antes e como sempre me havia comportado até ali. Vigiar meus gestos quando eu falava, aprender a fazer uma voz mais grave, me dedicar a atividades exclusivamente masculinas. Jogar futebol com mais frequência, não ver mais os mesmos programas de televisão, escutar outros discos. Todas as manhãs, enquanto me arrumava no banheiro, eu repetia a mesma frase sem parar, tantas vezes que ela terminaria por perder o sentido, passaria a não ser mais do que uma sucessão de sílabas, de sons. Eu parava e retomava a frase: Hoje eu vou ser um durão. Eu me lembro porque eu me repetia exatamente aquela frase, como se faz com uma oração, com aquelas exatas palavras - Hoje vou ser um durão (e eu choro enquanto escrevo estas linhas: choro porque eu acho essa frase ridícula e horripilante, essa frase que, durante antes, me acompanhou e que de certa forma ocupou, não creio que haja exagero em dizer isso, o centro da minha vida).

cada dia era um rasgão; a gente não muda assim facilmente. Eu não era um durão que eu queria ser. Eu havia compreendido, porém, que a mentira era a única possibilidade para fazer surgir uma nova verdade. Tornar-se outra pessoa significava me tomar por outra pessoa, acreditar ser o que não era para, progressivamente, passo a passo, me tornar essa pessoa (mais tarde me chamariam à razão: Quem ele pensa que é?).

* As vagas no ensino público francês são, de modo geral, designadas segundo o local de residência do aluno.