sexta-feira, 8 de abril de 2016

Se respira, escreve. / Esse é o poeta

Imagem: página pessoal do poeta.

Fazer poesia
como quem faz
esculturas. Com as mãos.
Tudo pode ser envolvido
pelo poema. Com as mãos.
Tudo pode ser escultura
poema. Envolver com
o bronze do poema. Todos
os objetos, as situações,
os cabides, as silhuetas.
Com as mãos. Poema.
Informe. Nas mãos.

O poema é resultado de um estranhamento sobre o mundo. Não é um corpo apartado do mundo. É um corpo-mundo. Como o romancista, o poeta vê o mundo e o carrega para o interior do poema. Mas, ao invés do romance, sempre na querença de ser o mundo, o poema é unidade entre todas coisas e é uma criação do mundo. Estas observações são trabalhadas no interior do exercício poético de Cesar Kiraly, uma obra feita no silêncio como se o poeta ainda pudesse ser um ermitão do tempo. Nas condições ridicularmente mediadas pelo excesso da imagem, silenciar-se ou colocar em relevo a obra (apenas a obra) é um risco dado a correr apenas aos bons poetas ou os que aspiram a sê-lo. É um gesto inveterado de resistência à necessária gestão vulgar entre a palavra e o seu construtor; não é uma posição de entrincheiramento da poesia, é uma estratégia de dispor à palavra (e somente a palavra escrita) à ordem das coisas. Toda obra poética é, primeiro que tudo, um artefato com palavras.

Estranhar, da maneira como se apropria este texto, está um pouco afastado da pose formalista, porque não significa apenas algo materializado na linguagem, mas, a linguagem produzida a partir de uma posição do sujeito no mundo e sua relação com o que lhe rodeia fisicamente ou imaginariamente. O poeta é sempre um ser que estranha o mundo; mas, ao mesmo tempo que o tem como uma ruptura com a via comum, também pode tê-lo como via comum. Há formas diversas de estranhar-se, às vezes num mesmo poeta, porque o mundo é um conglomerado de coisas e situações que o obriga a exercer formas diversas. Com Paulo Leminski, por exemplo, aprendemos que o mundo se faz da inutilidade das coisas; mas aprendemos ainda que o poeta é um ser apanhador de restos e um construtor de outros objetos.

Pressupõe-se, então, que a palavra não é estranhada por si só; ela é entranhada das coisas do mundo porque sua atividade é a de dar forma a tudo que é imaginado, até a própria imaginação. O poeta é sempre um ser que cata palavras (já disse João Cabral de Melo Neto) e lhe introduz novas forças capazes de alargar a simples visão sobre as coisas e por isso outros mundos. A palavra no poema é não apenas um dizer o mundo, mas um fazê-lo, força e forma encarnadas no mundo porque eivada daquilo que primeiramente lhe constituiu e das novas forças adquiridas na relação construída pela voz poética. A palavra é então, mais que tudo, meio de significação.

Para encontrar-se nesse mundo do poema é preciso, pois, uma posição diferenciada. É preciso encimesmar-se; isto é, estar no mundo das coisas corriqueiras, mas sem ser tragado pelo nonsense. O olhar do poeta é o de quem se interroga. Toda grande literatura é uma interrogação sobre o mundo. Mas, o poema não é somente na interrogação. É um dispositivo sobre uma recomposição de tudo. Assim, não somente o poeta é um estranhado no seu próprio idioma, também o leitor há de sê-lo. Poeta e leitor necessitam de uma conjunção e que isso não se confunda com uma aceitação daquilo que é oferecido pelo poeta, mas uma cumplicidade verdadeira intermediada pela palavra. Gesto que se sobressai, sempre, quando o leitor se encontra com exercícios poéticos como o de Manoel de Barros, poeta que soube construir com insignificâncias uma reforma sobre o mundo comum; embora, no caso de uma voz tão popular como a que engendrou o poeta pantaneiro, muitas vezes o leitor nem está em cumplicidade com o dito. O que, evidentemente justifica a possibilidade diversa de encontros com o fenômeno poético. Dentre esses, um ser-se belo por si só que aflora dos textos genuinamente literários e que é incapaz de ser descrito por qualquer apreciação teórica se não aquela clássica que nos diz ser o belo uma das forças de toda obra de arte. Há nesse interstício delicado, uma comunhão de sentimentos.

Todo poeta, portanto, tem para si ao menos dois mundos: aquele construído de uma geografia dos afetos, em grande parte das vezes, sem quaisquer atavios que alinhave uma importância universal; e aquele erguido a partir deste com saliva de palavras e que se faz universal. Uma vez citado o caso da obra de Manoel de Barros, eis que nela ficamos entre um diálogo com sua própria vivência; ao exilar-se no Pantanal, o gesto se confirma como, além de uma escolha pessoal (e, claro, profissional, que ninguém vive de lucros com a poesia) uma escolha para o ser-poeta. Todos deles necessitam de um chão próprio a partir do qual possam dar forma à sua obra. O mundo criado pelo poeta é fiado entre o mundo experimentado e o exercício da palavra. Outros poetas, no entanto, são desterritorializados, o que não quer dizer que a ausência de lugar se defina como um sem mundo. Um não-mundo ou um desmundo também são mundos; podem ser negações de um lugar mesmo – o que é mais comum entre os poetas – mas não de um mundo. 

***

A julgar pelo título, Variações: sobre um tema de Anselm Kiefer, se fosse vendido sem que o leitor tivesse acesso ao conteúdo e a qualquer informação sobre a obra, levaria muita gente, sobretudo os amantes ou pesquisadores sobre a arte do pintor e escultor alemão, a levá-lo para casa como quem levasse um ensaio crítico. Ou ainda, muito livreiro, desses contratados só para saber dizer o livro da moda, a colocá-lo entre os títulos de crítica. Ninguém dirá, apenas pela título, que este é um livro de poesia, porque, propositalmente, o poeta se desfaz de todos os atavios que suspendem o signo linguístico já desde a entrada da obra e utiliza uma terminologia eminentemente objetiva e acadêmica para dar nome ao livro. Estaria nisso, uma engraçada provocação ao leitor, tanto aquele viciado em sentir a poesia desde a superfície da obra quanto aquele outro que se diz apenas um leitor de prosa e pouco afeito ao poema? Não seria, aquilo de que se constrói a obra, de fato, um ensaio sobre a obra de Anselm Kiefer? É possível que as duas possibilidades estejam corretas, assim como é possível que o poeta queira, como tem sido maneira comum entre os escritores, a ruptura com as fronteiras institucionais do gênero literário. E, só para citar um exemplo que aviva essa última compreensão, o leitor encontrará entre os poemas ao longo do livro com textos como um, posicionado já próximo ao fim do livro, que é um exercício de prosa: “Os afiadores de facas”. Dividido em cinco segmentos este texto obedece a conjuntura de um pequeno conto.

As variações propostas pelo título podem corresponder aos diversos livros, por assim dizer, que o poeta quis escrever; ao dizer sempre o termo exercício como maneira de descrever o conteúdo deste título de Cesar Kiraly é porque a obra se manifesta sempre como uma tentativa de apreensão do mundo desde a sua forma mais simples ou matéria vulgar catada no depósito de restos da linguagem (tal como Paulo Leminski, mas com uma ressalva, a poesia de Variações é eivada de uma sisudez que contrasta com o exercício do poema-piada leminskiano) até a forma mais complexa do poema-enigma ou do poema de natureza mais reflexiva. O cotidiano do poeta de Variações, logo, não é o cotidiano leminskiano. Há certo tom de concentração como de quem ensaia seriamente sobre alguma coisa; o cotidiano aqui é aquele construído pela imaginação observadora acerca de outro mundo imaginado, porque a relação entre a voz poética e a perquirição da imagem – como se um expectador diante de determinados temas da pintura de Kiefer – é a força motriz destes livros.

São livros porque há entre os poemas de “Ingenuidade hesitante”, “Sofrendo de multidão”, “Sôfrego pecadilho”, “Jonas e a baleia” e “Girassol invictus” unidades próprias de livros que teriam vida se fossem separados dessa sequência proposta pelo poeta e publicados um a um como obras independentes, embora haja, evidentemente, uma espécie de linha ou motivo dominante que os coloca numa sequência como se partindo de uma menor unidade para uma corpo de forma mais robusta (a travessia e chegada aos textos em prosa). E mesmo, em relação a outros aspectos, seja a forma, a estrutura, o tema, há uma certa evolução – termo que talvez seja de inválida utilização, mas na ausência de um melhor, serve-nos. Mesmo sem estar diante do livro, sombreando os títulos que nomeiam as partes mais significativas da obra já é possível compreender acerca dessas afirmações uma vez que são títulos que parecem guiar o leitor num exercício de criação nascido de uma ingenuidade com certa obrigação interna que leva o poeta a reagir e colocar à mostra seus exercícios de fabricação do mundo.

E, de ao longo de Variações, o leitor sairá com a impressão de que a única janela de acesso ao mundo não está nas telas de Anselm Kiefer, porque há algo mais fora delas que só dado a ser observado pelo poeta – seja uma constante interação entre o poeta e seu universo criativo, seja aquilo que lhe motiva internamente à escrita, ao ambiente de trabalho, seja o seu estágio de solidão no mundo a uma necessidade de compreensão sobre as ações e os objetos que lhe rodeia, seja o movimento de imaginação poética e seu contato com os artefatos de linguagem diversos, seja, enfim, à reflexão sobre a própria palavra e a linguagem e a tentativa de recriação de um mundo pela palavra.

Há, um trabalho minucioso de coletar pequenas coisas, afetividades, compreensões que não negam o mundo habitado pelo poeta, antes querem, como pincelas, dar forma a mundo de compostos. Cesar Kiraly não tem a visão repetitiva e os elementos mínimos que dão forma à poesia de um Manoel de Barros – embora alguns temas, claro, aí se repitam e alguns elementos mínimos; ele é encarnação de um poeta que se alimenta de toda parafernália cultural que vimos construindo. Também da poesia. Mas, não prende-se a enciclopédia de nomes ou feições poéticas. De modo que, é quase impossível fazer uma delimitação sobre que elementos são principais ou primordiais na sua obra. Sabe-se que o engenho imaginativo e o diálogo com espécies diversas de artes são marcas profundas. Determiná-las será tarefa dada ao fracasso. Isso está impresso não somente na variedade de coisas as quais os poemas fazem referência, mas na necessidade que levou o poeta a unir sobre uma mesma dorsal tantos livros diversos e sem o propósito de ser antológico, mas alcançar o máximo de tonalidades. É uma poesia bricoleur assim como parece ser a arte de Anselm Kiefer. A referência, portanto, não é gratuita. Kiraly anseia uma poesia sem forma; como se fosse um magneto capaz de captar o mundo das multidões; Kiraly anseia pela espontaneidade do poema, sem se descuidar do processo de lapidação vocabular. “A poesia sem forma / das multidões. / Uma poesia espontânea. / Um multitudo. / Essa faria sentido: seria inaudível.”

Este parece ser, aliás, um tom muito peculiar na poesia brasileira, sempre muito atenta ao elementar ou ao cotidiano irrisório ou presa a uma unidade muito fixa desde o Modernismo. Se hoje aparece uma obra que a crítica tem por relevante e há um soprar de trombetas por onde passa criam-se poemas mimados ao sabor de um mesmo aspecto, de uma mesma questão. Falta a muitos poetas a coragem de mesmo depois de acertar, errar para outros recomeços. A poesia de Kiraly, assim construída em tantos livros num mesmo livro se mostra uma audácia: a de sempre recomeçar; é por isso que o leitor logo compreenderá o que estas notas tomam a liberdade de chamar por exercício. A poesia é um exercício sobre as coisas e sobre o mundo. E para cada coisa e cada mundo é necessário vestir-se de recomeços.

Nesse sentido, ao mesmo tempo que a poesia se alimenta dessa quantidade infinita de coisas produzidas pela nossa cultura, quer ser uma espécie de forma diferenciada ou uma espécie de vida nascida do detrito. Aqui, a poesia de Kiraly se aproxima da de Manoel de Barros porque as duas são produtos de uma contemplação e uma reflexão sobre o mundo – mas, enquanto o último busca negar essa construção complexa da nossa cultura pela construção de um mundo regido por outras necessidades, o primeiro procura sorver daquilo que constitui o extenso montúrio de saberes e coisas com os quais moldamos a realidade. Aqui, a poesia de Kiraly se integra à tradição poética do Modernismo brasileiro porque não é uma poesia que exclui, mas assimila. E não é o processo de assimilação a forma melhor acabada da antropofagia?

É evidemente que essa bricolagem de quase tudo retira a poesia de um estado monocórdico, sobretudo no que se refere aos temas. Aquilo que ingenuamente pode servir de compreensão a uma voz poética em falsete é tão somente uma maneira de reimprimir o que sempre deu sustança ao próprio gênero, sua propensão à variedade de sentidos. Aceitando o falsete, um coro, como é a extensa tradição do verso, é feito da dilética dissonância-ressonância, nunca só de uma forma. Há os poetas que juntam sempre os mesmos materiais para dar forma a seu universo. Contemporaneamente, isso é insuficiente e por isso há os poetas que se veem melhor representado num estilo de ruptura progressiva com uma unidade fechada como se uma provocação ao espírito libertário mas hegemonista do Modernismo, por exemplo. O que pode parecer certa promiscuidade com o descuido é uma estratégia de tornar palpável pela variabilidade o caráter polissêmico do poema. Essa pluralidade de materiais que para uns é a ruína da civilização é para o poeta contemporâneo um recomeço constante (uma variação para recorrer ao título da obra). O poema, no atual contexto, é forma adstringente. “Busquei todos os estilos, / a desagregação da língua, / a agregação lírica, / o tea- / tro, os romances, mas / sempre a poesia se impunha. / E minha poesia restou novelesca, / agregadora, desagregadora, teatral...”

A pluralidade de imagens é também matéria para o poeta trazer ao centro de sua obra uma infinidade de metáforas enformadoras do seu mundo; mundo que o leitor haverá de perceber quando da leitura de Variações é universal e sem fronteiras. Há poetas que cuidam de erguer sua obra como se um mundo impenetrável; com saídas, mas com fronteiras muito bem determinadas. Cesar Kiraly – é preciso reafirmar isso – faz-se voz numa multidão. Sua obra é sobre a dialética crise-produção, destruição-construção, eternidade-efemeridade e sobre a compreensão do lugar do poeta nesse fluxo. Isso não deve ser confundido com um radicalismo ou desmaterialização da peça artística, o que é um fenômeno tão castrador para um papel da poesia assim como é seu fechamento numa fixidez.

No caso de Variações, as medidas (mesmo quando não as há) estão no seu devido lugar; é uma poesia amadurecida. Quando se fala em ingenuidade (para citar um termo que este texto trouxe acima e que está logo no início do livro de Kiraly) é preciso compreendê-la não pelo sentido comum do termo, mas no sentido de que o poeta experimenta-se em tonalidades um tanto corriqueiras da poesia. Essas tonalidades se aproximam da dorsal a que a crítica tem associado a obra de Kiefer: a relação com o passado, a memória da ruína, o horror. Evidentemente que o contexto da obra poética é outro. Evidentemente que nenhuma obra se sustenta apenas de um único tom; mesmo as que se agarram a um mundo, contexto ou forma específicos, introduz nessa unidade pequenas variações. Eis aqui alguns dos saltos oferecidos pela poesia: retirar a palavra da corriqueirice para significar além do que já significa, e, na relação assumida entre a obra e o referente anotado no seu título, apresentar-se forma singular mesmo quando aproxima-se dos temas comuns ao universo de referência.

O poeta toca (ou quer tocar) em tudo. Por isso, um mundo sem fronteiras. É sem fronteiras porque parece vulgar se deter, numa era de complexas conexões, em redutos; porque compreende estarmos imersos numa mesma floresta de signos e atingidos pelas mesmas inquietações. Desde a ruptura com as fronteiras, descobrimo-nos sujeitos universais. Por mais que isso seja complexo e improvável de fixar determinações, não será demais, nunca, perscrutrar variações. Assim, bebe na doçura e aspereza dos sentimentos com os quais a poesia sempre esteve identificada e aproxima-se de uma natureza mais objetiva. Nesse mover-se de tons, entre certo ar clássico e a contemporaneidade da forma, se constrói a renovação de temas e modos como esses temas são estruturados pelo poema, mas não rompe (o que seria grave erro) com a natureza comunicativa da poesia. O verso de Kiraly é soturno, mas capaz de alcançar o espírito mais leve; aí está sua imponência. É construído de um processo em que recupera, descarta, sobrepõe e reflete sobre o própria escrita e isso faz da obra uma respiração contínua e um complexo objeto em permanente transformação. Há uma liberdade no manejo com a palavra e suas possibilidades de atuação em busca sempre de uma unidade, ainda que não revelada de maneira imediata porque parece se impor uma força tarefa partilhada entre a voz do poema e o seu leitor.

De certo modo, sua poesia bebe de todos os gêneros e da diversidade de expressões com as quais o poema tem flertado; ele pode até ser lido como ensaio sobre a obra de Anselm Kiefer. Essa não é uma possibilidade distante e ao registrá-la abre-se um percurso através do qual outro leitor crítico poderá percorrer uma releitura do Variações com melhor atenção. Mas, só a título de que a menção dessa relação ora proposta não se perca, é possível urdir o traço entre o que o poema registra e a forma como a imagem do girassol é resgatada na poética do artista alemão. A imagem é resgatada porque, antes Kiefer, os girassóis foram temas de outras obras – em Van Gogh, por exemplo.



Ao contrário da pintura de Van Gogh, a pintura de Anselm Kiefer suga toda excelência de vida capaz de emanar do amarelo-sol dos girassóis; estão sempre destituídos de cor, sua candura é tornada luto ou uma ode à destituição da vida, efeito que é mais acentuado ainda quando as flores são colocadas em cena com o homem em igual estado de natureza. Há com o aspecto fúnebre, um traço trágico e macabro, porque, propositalmente o artista se utiliza da oposição à forma vigorosa do girassol para dizer a perda irremediável da vida ou o intenso luto que nos constitui e que nunca nos fará refazermos-nos totalmente alegres.

“Girassol invictus”, o poema de Cesar Kiraly, processa quase uma investigação sistemática em torno do tema tal como proposto pelas imagens de Kiefer e inscreve sua força expressiva como se as descrevesse ao modo de um ensaísta (“o girassol / vem de baixo / para cima e / resiste. um tanto”), mas não se comporta em ser tão somente um resgate sobre a dor, a ausência de vida, a tristeza. Ora, esse é um girassol Invictus! E é pela candura da flor, resgatada na poética de Kiefer, que o poema avança com sua própria compreensão; como se confrontasse a representação proposta pelas imagens da pintura e nos confrontasse. Se todos os seres perecem (sim, e perecem, não se nega isso) é preciso louvá-los também por aquilo de que foram feitos ou por aquilo que foram capazes de propiciar (“Muitas coisas podem ser feitas com um girassol, até mesmo óleo de girassol, até mesmo comida de passarinho que não voa, aqueles do universo gaiola, mas pouca coisa pode ser feita com o sol”).

Se Kiefer aposta apenas no sol como força invictus, o poema ainda que reconheça a fragilidade, a finitude, a perda da beleza da flor e com ela todo encanto, há uma janela pela qual se pode respirar (para trazer os ecos de Mario Quintana) e ver outros girassóis: a poesia que reveste todas as coisas e todos os seres nutre-se de uma necessidade quase redentora em reafirmá-los seres e coisas. E, claro, o girassol do poema finda por dialogar com aqueles de Van Gogh (“os homens que decepam orelhas são feitos por girassóis”); e, como todo bom exercício ensaístico, ainda insere o próprio Kiefer entre esses seres feitos por girassóis (“Kiefer é criado por um girassol em dengo, desses que não esquecem”) numa compreensão de que na pintura do alemão vigora por sobre todas as coisas uma espécie de memória remosa do passado, sempre em virgília: lembrar a perda para não repetir no presente o gesto trágico do passado. Nisso é o próprio poeta que se confessa coletivamente – em termos de memória “todo poeta é dado às crueldades de apagamento do sol”.

Esquecimento, o poema é uma variação do mundo.



Dois poemas de Variações sobre um tema de Anselm Kiefer

As meias de Saussure

O que mais desejaria
seria calçar meias
no Saussure. Só sure
para calçar meias
cor de púrpura.
Purpurina que abarca
os céus todos com
encantos em chamas.
O mundo é feito
de noite e dia e
claro e escuro;
enquanto não for
engolido por uma
baleia.
Quando for.
Será feito de
noite e dia;
e claro e escuro
de dentro da baleia...
Talvez, assim
sejam as espinhas
de peixe cometa;
as estrelas do
mar cadência.

Como as meias
do Saussure;
que de mais
a mais servem
para esquentar
os pés.


Que os poemas nunca acabem

Quero que a poesia
morra. Tenho medo de
escrever de novo. Quero
que a poesia morra.
Porque apenas a morte
faz com que as coisas
sobrevivam. Morreu Deus.
Silêncios. Morre o
homem. Tantos deles.
Mor-
re a história. Esse tempo
que não para de passar.
Só a poesia não morre.
Não se pode fazer,
escrever, ver poesia;
mas matar, encerrar,
sepultar. Não. Isso
não. Quero que a poesia
morra. A morte fajuta
das coisas que ficam.
Não existe morte. Morte
é o atributo da memória.
Pior é o esquecimento. Esse,
nem tenho medo de
escrever.


* Este texto foi publicado pela primeira vez na revista escamandro.

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