Por Pedro Fernandes
Há escritores que dedicaram toda uma vida na escrita de um livro. Alguns,
com esse desejo universal conseguiram a proeza de escrever mais de um que se
destaca no âmbito de seu projeto literário. Estes são pouquíssimos. E entre
estes não se encontra Vladimir Nabokov. A afirmação poderá parecer arriscada
para um leitor estagiário na sua obra, mas não é vazia ou produto de uma
suposição profética. Ela se apoia na leitura de vários textos sobre outros
livros do escritor russo-estadunidense e estes, por sua vez, sublinham reiteradamente o mote a
partir do qual mais ou menos se constrói suas narrativas: um escritor em busca da obra ideal
se debruça no seu projeto, escreve, alcança o feito, e o feito é a própria obra
que o leitor tem em mãos com a assinatura de Vladimir Nabokov.
É possível que este procedimento varie, obviamente; mas, em linhas gerais
a linha de composição se estabelece: o escritor encerrado em seu labirinto de
obsessões trabalha as matérias que tem ao seu alcance, grande parte delas coletada
de outras leituras, até ao limite de torná-las impessoal e, portanto, próprias à criação literária. Nabokov apoiou toda sua trajetória pelo critério de negação da
experiência do vivido, como pareceu ser uma recorrência na literatura de seu tempo,
e entusiasmado com as possibilidades de feições diversas que uma mesma imagem
pode adquirir num labirinto de espelhos ou mesmo pela variação de perspectivas
de olhar. Essa negação da experiência do vivido se dá ainda pela tarefa da escrita
contínua que emprega para a lapidação outros materiais de leitura; consiste
em repetir o experienciado até o limite da desfiguração, aquele em que nem mesmo o próprio criador é mais capaz de reconhecê-lo ou nele se reconhecer.
O dom se inscreve nesse jogo
desde quando o próprio escritor cobra do leitor que se distancie da crença no
autobiográfico – que veja o material que tem em mãos apenas como criação propiciada
pelos aparelhos da percepção e logo transmutada pela possibilidade fabuladora da
imaginação. Obviamente que a recomendação cumpre o papel de uma navalha de dois
gumes: se por um lado pode nos fazer céticos ante o que se narra, por outro,
poderá aguçar nossa curiosidade natural por verificar a correlação entre o dito
e o vivido. É bom dizer: a recomendação do romancista não figura como um
imperativo e sim como uma estratégia-propósito de toda criação ficcional:
acreditar no narrado como a verdade que é no âmbito da vida interna que se
desenha na e pela narração.
Quando dizíamos que o metaliterário pode assumir, apesar do mesmo princípio,
feições diversas é porque O dom, por
exemplo, escapa do formato clássico segundo o qual o desfecho da obra revela ao
leitor o livro que se escrevia ao longo da narração. Aqui, saímos com a
possibilidade de que o livro por escrever será aquele que se designa durante
toda narrativa. Trata-se de um romance que cumpre um período de gestação
bastante conturbado para seu autor: entre 1932 e 1937, quando foi escrito, Nabokov
vivia na Alemanha como emigrado russo; só no final dessa década pôde se mudar para
os Estados Unidos onde viveu boa parte da vida. Se o que se passa ao jovem Fyodor Godunov-Cherdyntsev,
a personagem principal, foi produto desse lapidar incessante que beira a
desfiguração como é comum do projeto literário de Nabokov, um elemento se
preserva: a experiência do emigrado é o ponto principal da narrativa de O dom.
Fyodor chega a Alemanha, depois dos ventos da Revolução Russa e do
desaparecimento do pai, um entomologista de renome, e quando a mãe vai viver em
Paris com a filha depois do casamento desta. O jovem tem na biografia a publicação de uma pequena
antologia de poemas de corte autobiográfico e anseia pelo reconhecimento por
este seu trabalho ainda que seja entre a comunidade de emigrados. A
saída em massa de russos, em grande parte dissidentes ou figuras que poderiam
servir de bode expiatório para o regime favoreceu o desenvolvimento de uma
faixa de criadores, entre os quais se nota a presença do próprio Vladimir
Nabokov, que produziu uma literatura distante dos ideais de figuração impostos
pelo seu país de origem. É aqui que o autor de O dom, possivelmente, gestou sua ojeriza para com as narrativas nas
quais os princípios sociais, históricos, políticos e autobiográficos se
constituíssem como marcas principais da criação ficcional. Fyodor recupera essa
gênese. Embora a antologia de poemas que compôs, por exemplo, dialogue estreitamente
com sua própria experiência do vivido, é o efeito estético que almeja fazer
prevalecer.
Na Berlim de 1900 – a década é propositalmente suprimida pelo narrador
numa tentativa de desfiguração do modelo recorrente em que o dado do calendário
se marcava como estratégia narrativa pela verossimilhança – acompanhamos este
rapaz de ambições grandiosas para a construção de uma literatura capaz de
figurar entre os principais criadores de então, incluindo nomes consagrados como
Dostoiévski, Turguêniev ou Tolstói, figuras que a rebeldia não deixa de
passá-los à navalha pela acusação de integrados a um modelo produto de um status quo e de uma condição outorgada
por uma crítica não menos conveniente com seus trabalhos. Fyodor, depois de reconhecer
o fracasso para a poesia é, tomado pelo episódio de desaparição do pai, levado
a escrever um romance.
O projeto da personagem principal é a dominante de O dom. Dos cinco capítulos, apenas o primeiro e o último
desenvolvem situações que formam uma imagem de Fyodor, da sua relação com a mãe,
o pai e a irmã, das suas mudanças pelas pensões berlinenses, do seu convívio com
a comunidade de russos emigrados, do seu envolvimento amoroso com Zina Mertz.
Nos demais, entramos em contato com a ânsia e o nascimento da ideia, o
desenvolvimento dos planos para sua consolidação, a composição dos materiais de
pesquisa e as anotações construídas em vias de estabelecer uma atmosfera do ambiente
de desenvolvimento da história, a escrita e a publicação, a recepção e o renascer
da preocupação que se mantém pela grande obra. Todo esse trâmite poderá parecer
um exercício cansativo para o leitor, sobretudo porque marcado por uma visita
minuciosa a situações e personagens muito impregnadas das condições históricas do
país de natal de Fyodor; parte disso se deverá ao caso do leitor que tomar a
iniciativa de acreditar diretamente na recomendação de Nabokov e ignorar
totalmente que o protagonista e as personagens com as quais se relaciona se
encontram afundados no material da história.
Mas, não poderá o leitor deixar de se sentir um perscrutador do
exercício criativo do próprio Nabokov, ao observar o trabalho de seu
protagonista na composição, a vitrina, de A
vida de Chernishevski sobretudo quando se perceber cooperador criativo de
Fyodor. A personagem, depois de se aventurar nas memórias sobre o seu passado, nos
rastros deixados pelo pai a partir de seus livros e dos livros que o mencionam,
nos depoimentos da mãe, perceberá que, ao invés de um romance sobre essa
figura, deve conceber uma narrativa sobre o russo Nikolai Gravilovitch Chernishevski.
Mesmo o despertar da ideia, parece denunciar Nabokov, não é produto do acaso,
afinal é necessário que Fyodor tenha adquirido toda a vivência sobre a vida do
pai para depois do contato com um texto de Nikolai se aventurar numa narrativa
sobre um nome que manifestamente é, entre os russos, o mais sagrado.
As possibilidades ao acaso de que o pai de Fyodor tenha sido mais uma
das vítimas da revolução, qual foi o protagonista de seu livro é o elemento motivador
ao desenvolvimento da espiral imaginativa capaz de subverter a morte de Chernishevski.
Isto é, a composição dessa personagem revelada no capítulo quatro de O dom, é produto das elucubrações que
desenvolve em torno da própria figura do pai. Isso fica visível quando Fyodor
fabula outras alternativas para o fim de um homem que se tornaria para os
russos um mito; a morte não acontecida na ficção o leva a fabular sobre outros
fins possíveis para seu protagonista o que sublinha a dimensão mítica qual um
sebastianismo, para recuperar um dos mitos próximos à nossa cultura, ou mesmo
de um Antonio Conselheiro. Chernishevski escreveu na prisão o romance O que fazer? – um título que marcou todo
o imaginário russo do século XIX e desempenhou motivações criativas a toda uma
extensa geração de escritores e constitui ao lado de O capital, de Marx, uma compreensão acerca da dinâmica emocional
que favoreceu ao levante da Revolução Russa.
Quando vai viver em Berlim, Fyodor trava contato com um dos filhos de Chernishevski,
Alexander; a narrativa recupera o fim trágico do romântico Yacha e a derrocada
depois de sua morte do que seria a família mais promissora do famoso revolucionário.
A chegada de Fyodor à família Chernishevski representa uma alternativa dos pais
de enfrentamento da dor da perda; o protagonista nabokoviano guarda, aos olhos deles,
estreitas semelhanças com o filho morto. Já aqui nasce o contato de Fyodor com
o imaginário sobre o qual trabalharia mais tarde: a Sra. Chernishevski o estimula
a escrever sobre Yacha e o nosso protagonista logo descobre um intricado
triângulo amoroso que teria levado a desgraça à família: Yasha guardava uma
paixão platônica pelo amigo Rudolf, este, por sua vez, guarda uma paixão de
mesma proporção por Olya e esta por Yasha, perfazendo um círculo que favorecerá,
depois de em parte revelados os sentimentos, a um suicídio coletivo no qual
apenas o primeiro entrega-se à eternidade. A história oculta, o drama
psicológico das personagens daria motivo para o melhor dos romances de corte
romântico pelos quais o jovem Fyodor não dispõe de qualquer interesse. Por vias
tortas, a história do avô de Yasha alcança a dimensão do que procura: não a do
romance histórico mas a do romance de subversão da história.
Se A vida de Chernishevski
revela o talento de Fyodor entre seus pares, os mesmos que calaram sobre os
livro de poemas que inaugura sua obra – e mal sabe esses pares que a obra publicada
por sua conta é fruto das elucubrações em torno de um soneto – é a obra que desperta
no jovem escritor a possibilidade de escrita do livro por vir. E é este o livro
que temos em mãos – O dom. O que Nabokov constrói, portanto, não
um romance diante do espelho, é um puzzle,
a obra em seu gérmen. Este título reveste-se, assim, de uma complexa carga de
ironia: ora é mesmo o dom da escrita o que trata a narrativa ora é a negação da
ideia de dom enquanto inspiração atribuída ao escritor por ordem do acaso.
Também o dom é, qual a obra, uma criação forjada pelos mesmos recursos que
forjam a escrita.
Curiosamente não é Fyodor quem incorpora o estilo de Chernishevski à
composição de sua narrativa, mas Nabokov quem se deixa contaminar pelas descrições detalhadas. A característica
estilística do escritor-motivo do texto do protagonista de O dom é revelada pela narrativa de Fyodor. Isto é, o fato de O dom não ser um romance posto ao espelho
não é motivo para compreender que as engrenagens que suspendem não sejam produtos
desse processo e, logo, impossível de negar pelas imagens sugeridas a partir da
obra composta por Fyodor que não seja a imagem do próprio Nabokov a que se
revela.
Este foi o último livro que o autor de Lolita escreveu em russo e nele se perscruta uma revisão de uma literatura
que do contexto referido por O dom só
ganharia maior consideração mundo afora. Reiteradas vezes se disse que aí está
um acurado panorama do universo literário russo. Mas esse painel não é dado
pela retomada apaixonada dos grandes nomes, e sim pelo que de frágil se esconde
neles. Uma alternativa do próprio Nabokov em se imiscuir entre eles, qual
almeja Fyodor, a fim de ser um entre eles ou mesmo um maior que eles? Não é de
ego que esse romance fala: é a de reconstrução de um lugar que nele se permita
a incisão do novo. Ao descortinar todos os bastidores da literatura, as relações
pessoais e intelectuais o que nos é revelado é que, tal como escrita e a inspiração, também se fabricam os tais lugares no panteão, estes são produções ideologicamente
motivadas.
Por fim, para alinhavar uma das pontas soltas no texto, afirmar qual
seria o livro ideal que definiria a obra de Nabokov e o coloca entre os desse
panteão, só mesmo depois de uma leitura de grande parte de seus títulos – não
poucos, aliás. Não é O dom,
entretanto. É possível que no fim, se chegarmos, saberemos que é toda a obra,
essa que se configura um só corpo como é da natureza criativa dele.
***
(fragmento da obra)
Ele ouviu o corredor se encher de vozes se despedindo, ouviu cair o
guarda-chuva de alguém e o elevador chamado por Zina roncar e parar. Ficou tudo
calmo de novo. Fyodor foi à sala onde Shchyogolev quebrava as últimas nozes,
mastigando de um lado, e Marianna Nikolavna tirava a mesa. Seu rosto gordo,
rosa escuro, as abas brilhantes do nariz, as sobrancelhas violeta, o cabelo cor
de abricó virando um tom azulado na nuca gorda raspada, o olho azul com o rímel
borrado no canto, mergulhando momentaneamente o olhar nos detritos da infusão
no fundo da chaleira, seus anéis, o broche de granadina, o xale florido sobre
os ombros – tudo isso junto constituía um retrato borrado, cruel, mas rico de
algum estilo vulgar. Ela colocava os óculos e pegava uma folha com números
anotados quando Fyodor perguntou quanto devia a ela. Diante disso, Shchogolev
ergueu as sobrancelhas, surpreso: tinha certeza de que não receberia nem um centavo
de seu inquilino, e, sendo essencialmente um homem bom, havia aconselhado a
esposa ainda ondem a não pressionar Fyodor, mas sim escrever a ele de Copenhague
uma ou duas semanas depois, ameaçando entrar em contato com seus parentes.
Depois de acertar, Fyodor guardou três marcos e meio dos duzentos e foi para a cama.
No corredor, encontrou Zina voltando de baixo. “E então?”, ela perguntou, com o
dedo no interruptor, uma interjeição meio interrogativa, meio de insistência,
que queria dizer aproximadamente: “Está vindo para cá? Vou apagar a luz aqui, então
venha depressa”. A pinta em seu braço nu, as pernas vestidas com seda clara, chinelos
de veludo, rosto baixo. Escuro.
Ele foi para a cama e começou a adormecer com o sussurro da chuva. Como
sempre no limiar entre a consciência e o sono, todo tipo de dejetos verbais, cintilantes,
tilintantes, irromperam: “O cristal crepitante da noite cristã sob a estrela crisolítica”...
e seu pensamento, ouvindo por um momento, aspirou a reuni-los, usá-los, e começou
a acrescentar por si mesmo: extinta, de Yasnaya Polyana a luz, e Púchkin morto
e a Rússia longe... mas como isso não era bom, a escalada de rimas se estendeu:
“Uma estrela cadente, um crisólito cruzador, um avatar de aviador...” Sua mente
mergulhou mais e mais fundo em um inferno de aliterações aligátores, em
infernais cooperativas de palavras. através de seu acúmulo sem sentido, um botão
redondo na fronha cutucou sua face; virou-se para o outro lado e, contra um
fundo escuro, pessoas nuas corriam para dentro do lago Grunewald, e um
monograma de luz parecendo um infusório deslizou diagonalmente do canto mais
alto de seu campo de visão subpalpebral. Por trás de certa porta fechada em seu
cérebro, segurando a maçaneta, mas voltada para longe dela, sua mente começou a
discutir com alguém um segredo complicado e importante, mas, quando a porta se
abriu por um minuto, viu-se que estavam falando sobre cadeiras, mesas,
estábulos. De repente, na névoa que se adensava, no último pedágio da razão,
veio a vibração prateada de um toque de telefone, e Fyodor rolou de bruços, caindo...
A vibração ficou em seus dedos, como se uma urtiga o tivesse furado. No corredor,
tendo já devolvido o receptor a sua caixa preta, estava Zina – ela parecia
assustada. “Era para você”, ela disse em voz baixa. “Sua antiga senhoria, frau Stoboy. Ela quer que você vá até lá
imediatamente. Tem alguém esperando você na casa dela. Depressa.” Ele enfiou
uma calça de flanela e, ofegante, seguiu pela rua. Nessa época do ano, Berlim
era algo semelhante às noites brancas de São Petersburgo; o ar era cinza
transparente, as casas passavam nadando como uma miragem de sabão. Alguns trabalhadores
noturnos haviam quebrado o pavimento na esquina, e era preciso se esgueirar
pelas estreitas passagens entre as placas, todos recebendo na entrada uma
pequena lâmpada que deveria ser deixada na saída em um gancho parafusado a um
poste, ou simplesmente na calçada ao lado de algumas garrafas de leite vazias. Deixando
sua garrafa também, ele correu mais adiante pelas ruas opacas, e a premonição
de algo incrível, de alguma surpresa sobre-humana impossível, salpicou seu coração
com uma mistura nevada de felicidade e horror. Na neblina cinzenta, crianças cegas
usando óculos escuros saíram aos pares de um prédio escolar e passaram por ele;
elas estudavam à noite (em escolas economicamente escuras que, durante o dia, abrigavam
crianças que enxergavam) e o clérigo que as acompanhava parecia o professor da
aldeia de Leshino, Bychkov. Encostado a um poste de luz, a cabeça tosada
pendente, as pernas em tesoura com calças listradas bem abertas e as mãos
enfiadas nos bolsos, estava um bêbado magro como se saído diretamente das
páginas de uma velha sátira russa. Ainda havia luz na livraria russa – estavam servindo
livros aos motoristas de táxi noturnos, e através da opacidade amarela do vidro
ele notou a silhueta de Misha Berezovski, que entregava o atlas preto de Petrie
a alguém. Deve ser duro trabalhar à noite! A excitação o tomou de novo assim
que chegou a seus antigos arredores. Estava sem fôlego por causa da corrida, e
o cobertor enrolado pesava em seu braço – tinha de correr, mas não lembrava o
desenho das ruas e a noite cinzenta confundia tudo, mudando como numa imagem
negativa a relação entre as partes claras e escuras, e não havia a quem perguntar,
todo mundo estava dormindo. De repente apareceu um álamo, e atrás dele, uma
alta igreja com janela vermelho-arroxeada dividida em losangos arlequinais de
luz colorida: dentro, o serviço noturno estava em curso, e uma velha de luto com
algodão sob a ponte dos óculos subia depressa os degraus. Ele encontrou sua
rua, mas no fim dela um poste com uma mão enluvada indicava que naquela ponta
uma pilha de bandeiras havia sido preparada para o festival de amanhã. Estava com
medo de perde-la em um desvio a além disso o correio – que viria depois – se mamãe
não tivesse já recebido um telegrama.
Ele passou com dificuldade por tábuas, caixas e um granadeiro de brinquedo encaracolado
e avistou a casa conhecida, onde os trabalhadores já haviam estendido na calçada
uma faixa de tapete vermelho da porta até a sarjeta, como costumava ser feito
na frente de sua casa no Aterro Neva em noites de baile. Ela estava com as faces
brilhantes e usava um jaleco branco hospitalar – havia praticado medicina
antigamente. “Só não fique todo agitado”, ela disse. “Vá até seu quarto e
espere lá. Tem de estar preparado para tudo”, acrescentou com uma nota vibrante
na voz e o empurrou para dentro do quarto no qual achara que nunca mais ia
entrar. Ele a agarrou pelo cotovelo, perdendo o controle, mas ela se soltou com
um movimento brusco. “Alguém veio ver você”, disse Stoboy, “ele está descansando...
Espere uns minutos”. – A porta bateu com ruído. O quarto estava exatamente como
se ele ainda morasse ali: os mesmos cisnes e lírios no papel de parede, o mesmo
teto pintado maravilhosamente ornamentado com borboletas tibetanas (ali estava,
por exemplo, a Thecla bieti). Expectativa, assombro, o frio da
felicidade, o surto de soluços fundiam-se numa única agitação ofuscante enquanto
ele esperava ali no meio do quarto, incapaz de se mexer, ouvindo e olhando para
a porta. Ele sabia quem iria entrar
dentro de um momento, e ficou perplexo então que tivesse duvidado do seu retorno:
duvidar agora lhe parecia a obtusa obstinação de um tolo a desconfiança do
bárbaro, a autossatisfação do ignorante. Seu coração estava explodindo como o
de um homem antes da execução, mas ao mesmo tempo essa execução era tamanha
alegria que a vida se apagava diante dela, e ele não conseguia entender a
aversão que experimentara quando, em sonhos construídos às pressas, havia evocado
o que estava agora acontecendo na vida real.
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