quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

De dentro, o mundo é todo outro

Por Pedro Fernandes



Um catálogo de elucubrações. Assim poderíamos compreender o único romance de Sam Shepard e seu último livro. Não há na afirmativa qualquer noção de rebaixamento da obra, como poderá parecer aos olhos mais incautos. Do contrário, é este um título que se filia à longa tradição daqueles que nutrem outra percepção acerca do mundo, isto é, apreendem-no por sua dimensão descontínua, caótica e fragmentária. Essa percepção da realidade enquanto complexo em formação é assinalada desde quando a descoberta de que seus limites não são determinados e sim constituídos pela atuação eu-mundo. Veja que se desfaz o distanciamento há muito forjado de uma relação entre o eu e o mundo. É tarefa contínua, esgotável apenas depois da morte, a de criação de nosso universo. O real é modelável tal como o ator modela a personagem ou o escritor a cosmovisão do mundo figurado no romance e nesse processo o que antes conjugava duas extensões – eu e o mundo – são recriados mutuamente.

Tais apontamentos esclarecem o noveIo linguístico fabulado por Sam Shepard, texto que a todo tempo poderá suscitar no leitor as mesmas complexidades que experimenta em obras como Água viva, de Clarice Lispector, Tarântula, de Bob Dylan, ou os romances mais recentes de António Lobo Antunes, para citar ao menos outros livros que lidam com a continuidade de uma ruptura radical de certa ordenação do mundo, de cariz antirrealista, inaugurada por romancistas como William Faulkner. No romance do escritor estadunidense se confirma ainda a desnecessidade de uma justificativa capaz de ajuizar o discurso do narrador. Ou seja, não é preciso que o escritor recorra à ideia da consciência atormentada, do louco, do homem no leito de morte ou tomado pelas cicatrizes do tempo manifestas na senilidade. Aparentemente, este narrador, é como alguns narradores do escritor português acima citado, mero fabulador, interessado em aferir por meio do olhar multiperspectívico as situações requeridas pela memória.

Isolado do corriqueiro, a voz de Aqui de dentro recorre um trânsito por entre as principais inquietações trazidas pelas lembranças do seu passado, com um interesse, somente, o de destituir os liames igualmente falsos que insistem separar presente, passado e futuro. Vale recorrer a pelo menos duas passagens, uma delas dos diálogos imaginários que trava com uma certa Garota Chantagem, para justificar essa preocupação do que se mostra no protótipo de narrativa. Uma delas, a constatação de não existe presente, este é passado e futuro. Enquanto exercemos qualquer ação esta já não é, mas foi, dimensão, portanto que torna inviável o que se convencionou como presente. A outra passagem é a constatação da voz narrativa de que “o desconhecido às vezes é melhor”. “Às vezes muito melhor”, reforça.

A primeira, ao que parece, reforça o próprio projeto estrutural do romance, uma vez que as situações evocadas, por mais discrepantes ou distanciadas que pareçam, são produtos de uma consciência que as relacionam e as colocam sob as mesmas linhas de determinação que as de possibilitar a realização de uma narrativa. Enquanto elementos de memória não se apresentam fixados a um passado mas enformam uma condição do futuro ou, se preferirmos, do nosso presente.

O interesse pelo desconhecido, portanto, faz dessa consciência afeita a não se intimidar ante as situações imprevisíveis forjadas pelo fluxo diverso da memória que eventualmente poderá encontrar com situações difíceis e dolorosas de enfrentar, seja a morte repentina do pai, seja a da jovem Felicity, que coloca essas duas personagens em maus lençóis. E a subversão temporal reinaugura a preocupação comum de todo relato, o de não cair nas sendas do esquecimento, mas sempre se apresentar enquanto cena em realização. E essa condição evidentemente só se constitui possibilidade porque o universo que se descortina pela retina do leitor é o interior, onde a ordem não responde pela tentativa segmentária do universo empírico. Isso, aliás, está estruturalmente proposto desde o título do romance: o que brota no papel é o de dentro.

É claro que, educado como fomos para desprezar uma compreensão paradigmática da realidade, nossa tentativa ante a descontinuidade é a de forjar uma linha que seja capaz de nos possibilitar algum amparo.  Assim, é que procuramos, do princípio ao fim do texto, esclarecer a quem afinal pertence a voz que retalha situações, e em Aqui de dentro, qual sua relação com o pai, o porquê dessa obsessão por ele, pela amante dele, Felicity, qual tipo de traço une o narrador à Garota Chantagem, em que lugar se situam esses elementos indicativos de uma narração. Estas e outras indagações construídas pelo leitor se por uma parte o mantém preso ao nó textual por outra pode servir de uma percepção deficitária do texto. Resta-nos obedecer ao fluxo da consciência que aí se derrama como obedecemos ao nosso fluxo interior quando paramos para observar seus movimentos.

Aqui de dentro é uma história in progress. Isso quer dizer que não é uma história. Como não é uma narrativa. Não no sentido tradicional que sempre utilizamos para tratar sobre a história e a narrativa. Enquanto continuum tudo dependerá do itinerário escolhido pelo leitor para cumprir sua travessia e é possível que este curso mude ao longo da leitura como é possível que noutra ocasião se revista de nuances totalmente inéditas que não ficaram visíveis numa primeira leitura. Por exemplo, se o leitor adotar a ideia de que esta voz, pela diversidade de referências aplicadas ao cinema, é a de um ator, logo esse conjunto de elucubrações pode significar sua tentativa de composição de uma personagem para um filme qualquer; se adotar a ideia de que é um diretor poderá percebê-lo interessado na composição de um roteiro. Numa e noutra – e possivelmente nas interpretações que recorrer – o que este leitor encontrará é uma pré-história, isto é, sua gênese, seu nascimento, não a história.

Por isso, se permite encontrar situações de toda uma vida num texto cuja extensão pode ser vencida num dia de leitura: o narrador perturbado com a morte do pai; as recordações dele sobre suas histórias, como o envolvimento com a guerra, a relação com Felicity, uma garota muito jovem; a fuga repentina do pai e o refúgio num trabalho qualquer numa fazenda de criação de gado; a complexidade da relação com a mãe; do seu pai com sua mãe; do narrador com o extenso catálogo de mulheres que transitam por sua memória, a própria Felicity, a Garota Chantagem, que o leitor logo não tardará descobrir de que se trata de um alterego da própria voz narrativa, uma voz que discute de si para si os impasses da composição do livro e sobre sua publicação ou não; a aproximação do narrador com as narrativas fílmicas e outras leituras; a reflexão sobre sua própria condição de sozinho no mundo, depois de atravessá-lo numa onda rarefeita das mais diversas experiências; a contínua tentativa de formular uma consciência em que se fundem sua história vivida, a imaginada e as compreensões que alinhavam uma e outra. Tudo isso e mais é o que contém Aqui de dentro. Mas, claro, tudo pode ainda não ser verdade e apenas um conjunto diverso de cenas de um script. Caçoar da percepção enquanto certeza é o grande trunfo de obras como esta de Sam Shepard. Uma espécie de provocação interpelativa da qual somos obrigados a sempre lembrar: a realidade é mesmo isso sobre a qual temos as mais correta das certezas?

***

(fragmento da obra)

Questão de continuidade

Ela tinha família, afinal. Pai. Mãe. Irmã. Irmão. Uma casa. Um quarto ao qual voltava dia após dia. Centro-oeste. Eu, eu tinha o meu figurino e barba de dois dias. Precisava manter assim por uma questão de "continuidade". A barba. Não de três dias. Não de dois dias e meio. Mas de dois dias exatos. A câmera pegava a diferença. Um daqueles filmes de "micro-orçamento", como dizem hoje em dia, em que a bem dizer a gente não tem trailer, não tem privacidade nenhuma, e assim acaba vagueando de um quarto ao outro nesse hotel vagabundo, em que a roupa do personagem fica pendurada torta, sem vida em cabides de arame, e mais outro quarto onde ficam os livros e coisas de toucador. Vagueando por longos corredores acarpetados, manchados, estranhos aparecendo pequeninos na distância, então aumentando e ficando mais alerta enquanto você se aproxima, quando de repente veem que você realmente está com uma cara muito assustadora com aquela barba de dois dias, não percebem que só está interpretando ou em vias de interpretar um personagem e acreditam no que os olhos veem quando você passa, que você de fato podia ser aquela pessoa psicótica real e capaz de fazer mal de verdade a eles mesmo sem querer. Só de passar ao lado. E chega ao ponto em que você realmente se diverte em apavorar os desconhecidos quando vai tomar o café da manhã. Chegando mais perto, cada vez mais perto, cada vez mais perto deles no longo corredor manchado, recusando-se a desviar os olhos. Recusando-se a evitá-los. Forçando-os, na verdade, a débeis tentativas de sorrir cordialmente à maneira matinal americana bem-educada ou a te ignorar por completo como se você fosse apenas mais uma barata no sistema. Não adiante você se dizer que esse troço horrível vai durar só mais três semanas, como uma pena de prisão em que você fica riscando os dias num calendário improvisado. X nos números. Contando os dias. Uma parede de concreto áspero.

Agora sinto que estou ficando com raiva. Uma onda me toma. Talvez seja alguma séria entropia que tem a ver com a deterioração inevitável do cérebro e da mente. Talvez algo como a loucura de Otis no século XVIII de é à sua janela aberta, mãos atrás das costas, fitando o gramado úmido escuro do parque, pegando uma pistola de pederneira de uma mesinha francesa delicadamente entalhada e disparando na noite de Boston. Talvez seja algo assim. Os britânicos continuam em formação rígida - olhos firmes em frente, mandíbulas cerradas, quepes de pele de urso preto-brilhante e botas engraxadas.

Em todo caso, o meu plano era construir cuidadosamente um personagem, grão por grão, no sentido de sedimento - como às vezes ele se deposita no fundo de um copo com água do rio antes de darmos um grande gole fresco. Não deu certo, claro. Não tinha nada de "cuidadoso" naquilo. Não seio que eu estava pensando.

Eu estava no quarto 329, no térreo, dando diretamente para as águas estagnadas de um pequeno tributário do Hudson. A cidadezinha em si foi concebida na metade do século XVII, incendiada e saqueada pelos britânicos em 1777 e coberta de celeiros feitos com pedras brutas. Esse hotel de estrada deplorável era construído nos moldes de um Holiday Inn tradicional, sem o laminado plástico verde-lustroso nem a marquise acolhedora para os caçadores de cervos. Todo dia tinha alguma reforma sendo feita num andaime de 12x12. Operários de construção com capacete amarelo e botas com ponta de aço entravam e saíam dos banheiros sinalizados com "Apenas para portadores de deficiência", arrastando pedaços de reboco e pó. Não tinha serviço de lavanderia nem restaurante. Uma máquina de batata chips que engolia várias moedas de 25 centavos e uma camareira com sotaque letão que nunca entrava no quarto a menos que a gente pusesse uma plaqueta "Favor trocar os lençóis" na maçaneta da porta. Filetes de sujeira cinzenta pendiam como esporos de cogumelos na grade do ar-condicionado. Caixas de plástico preto cheias de veneno de rato aninhadas na grama tomada pelo mato no lado de fora da janela. 

O primeiro, primeiríssimo elemento que captei com certeza nessa minha "busca do personagem" foi "exílio". A sensação de estar "apartado" como modo de vida. Como um ser humano fica à deriva. Algo que eu conhecia muito intimamente. Estava nessa de novo. A Garota Chantagem parecia ter sumido outra vez - caída no abismo. Muito provavelmente desatenção minha - falta de enviar mensagens. Falta de sentir receptividade. Imagino. Não sei. Tinha isso em mim. "Exílio". Conhecia isso. Não precisava ensaiar. A minha vida inteira era um preâmbulo.

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