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Costumeiramente
pensa-se sobre forma e linguagem quando se fala sobre renovação na poesia. Basta olharmos de perto determinados
exercícios poéticos produtos das chamadas vanguardas literárias – os instantes
mais radicais sobre as renovações em quaisquer campos da literatura – e a
incorporação das suas influências para ver isso claramente. Para citar do
último grupo, isto é, dos que beberam na fonte de tais revoluções, nunca será
vão lembrar Carlos Drummond de Andrade, quem melhor no seu tempo compreendeu os
propósitos alardeados pelo modernismo, João Cabral de Melo Neto e sua poética
de traço cubista, Manoel de Barros e sua estreita aproximação com o
surrealismo, e já aí estão alguns dos nomes mais que representativos,
significativos, da cena literária nacional.
Mas, essas
renovações também se mostram (nem sempre conjugadas aos aspectos formais e linguísticos)
no tema. E é possível que este signifique tanto ou mais que os outros aspectos,
sobretudo, quando oferecem rupturas para os modelos correntes – tal como fez
Rimbaud – ou para os chamados temas não críveis pela poesia, ou ainda para assuntos
sempre recorrentes quando muitas vezes, numa dimensão maior, são outros os que
melhor serviriam ao poeta. Nas duas situações não lidamos com o poeta ingênuo
mas com o leitor perspicaz dos nomes formadores da chamada tradição a qual
interessa filiar sua obra (filiar não significa necessariamente seguir um
protocolo de uma determinada corrente ou certo grupo mas dialogar com aspectos
que lhe servem de interesse à composição de sua obra) e dos nomes de seu tempo.
Como todo
indivíduo que labora com a palavra, é inconcebível, no auge da cultura letrada,
de forte influência bibliográfica e ante a pluralidade de vozes, poetas que,
por gosto ou ignorância, se desfaçam dos seus antecessores e dos seus
contemporâneos. Desfazer-se tem aqui outra conotação, diferente de negar. Negar
é quase-sempre uma necessidade para ao poeta e a feitura de seu universo. Negar
é uma alternativa de autoafirmação da sua voz. É uma estratégia dissonante e
consonante da criação. Mesmo aqueles que se sustentam pela máxima de que a
experiência (e só ela) é o suficiente para a construção de uma obra.
Essas
constatações aparentemente fundamentais quando o leitor mais atento busca
fundamentos para os motivos em sua grande parte de natureza irrefletida, porque
há entre ele e o poema uma relação de afinidade determinada por uma complexa
rede de aspectos subjetivos – alguns deles indetermináveis pelas vias do olhar
racionalista, crítico ou determinista – servem à leitura do poeta em construção
e do poeta de magnitude quase sempre inquestionável, os já reconhecidos ou os
por conhecer. São caminhos ou termos encontrados pela crítica a fim de
justificar suas escolhas que não através do mero influxo de uma paixão pelo que
lê ou ainda, nos tempos de fronteiras corrompidas, um distanciamento assumido
sobretudo pelo leitor de boa índole do poeta amigo ou do poeta vinculado a
determinado grupo editorial e sobre o qual sempre é mais conveniente falar bem
e não soltar farpas sobre certas inconveniências da escrita. Evidentemente que
o embate (não a chantagem e o xingamento para citar dois comportamentos do
leitor raso que não dialoga – e aqui, por pura ignorância – com o que não lhe é
conveniente) é muito mais produtivo para o poeta. E o poeta lúcido há sempre
que desconfiar quando sua voz só encontra consonâncias, porque estas não
existem e porque são fiéis produtoras do poeta medíocre ou, para glosar certo
verso da Ana Cristina Cesar, a voz de único tom pode fazer qualquer um
sentir-se Fernando Pessoa.
Entre os
nomes que ousaram intervir com os chamados temas pouco poéticos – e por isso as
observações desenvolvidas até aqui – está o de Hilda Hilst. Isso está agora
ainda mais claro porque se tem acesso ao mais completo panorama de seu trabalho
com a poesia. Hilda, talvez pela razão de ser avessa a dogmas e porque não se
interessou pactuar com determinados grupos do Olimpo (leiam a expressão com a
máxima de ironia possível), foi parar no rol daqueles cuja obra melhor ficaria
se caída no esquecimento. Contra essa última imposição podemos pensar na saída
construída por ela: passar-se pelo que não era (ou será que era?) no intuito de,
enquanto se desfazia da voz comum que rebaixava seu trabalho, se mostrava
igualmente como as outras já ingressadas por toda sorte de subterfúgios ao
panteão dos sacrossantos. Essa posição é arriscada e não serve aos fracos, aos
que se encantam pelo bruxulear da fama do bem-aceito e esquecem do lugar devido
do poeta – o não-lugar. Hilda, observem, fez-se em trânsito e construiu
aberturas para ruir com o interesse escuso da crítica conveniente e do leitor
inconivente que zelaram, os dois, por jogá-la no limbo.
O poeta é e
não é homem do seu tempo. Sabe de quais materiais molda seu universo. É porque
não é possível se desfazer das obsessões que lhe tomam no momento de
composição; não é porque, mesmo expondo às claras os motivos do seu tempo, estes
não são sorvidos à sua maneira pelos leitores imediatos. Isso justifica a
perenidade de determinadas obras; justifica o caso de redescoberta da poesia de
Hilda Hilst há pouco mais de uma década. É o processo de contínua leitura
motivado em parte pela exposição escusa da crítica de seu tempo quando não o
silêncio em torno da sua obra – silêncio lido pela poeta como o pior dos castigos
da Musa contra o trabalho do poeta, silêncio que sempre foi preenchido pelas
banalidades produzidas por outros poetas – que faz finalmente sua obra alçar
outra dimensão na e para a literatura recente.
Não se trata
isso de reconciliação do centro com os das margens – porque além dessas duas
dimensões possuir suas limitações, sobretudo a segunda, a releitura de uma obra
nem sempre é feita com o interesse de corrigir a visão deturpada de um tempo. É
porque finalmente é feita uma leitura coerente e não sentencial de sua obra. Nesse
momento parece que sempre ouviremos ela nos dizer, “fico besta quando me
entendem”. E, afinal, pode nem ser entendimento somente; é que obedecendo certa
posição repetível entre os grandes, Hilda esteve em contato com as vozes de um
tempo porvir, ainda que este tempo de hoje ora pareça tão mais retrógrado,
corrompido, coberto por uma espessa camada de fumo com elementos do pior da
civilização. E esta não é uma posição pessimista; é somente uma constatação do
próprio malgrado humano lido pela poeta em “Poemas aos homens de nosso tempo”.
Da extensa e
multifacetada obra de Hilda Hilst, a poesia, tal como sua prosa, esteve
interessada em expor, dentre outras questões ou temas, os conflitos centrais
entre sujeito mundo e os discursos sempre apresentados como acabados ou
não-sensíveis ao campo do poeta; tal posição está em consonância com o que se
esperava da obra de um poeta do seu tempo, mas, tudo se filia a uma condição
marcadamente única só possível de ser realizada através de uma escrita interessada
no trabalho não de permanência mas de desestabilização das trivialidades.
“O primeiro
verso surge como um fluxo sanguíneo e é sempre um espanto. A partir dele procuro
continuar o trabalho mantendo a coerência das figuras e a mesma intensidade”,
diz a poeta numa entrevista recolhida no apêndice de Da poesia. Assim se revela o sentido da poesia para ela: espanto e criação
– os dois recursos indispensáveis ao bom poema, que se feito de um ou só de
outro corre o risco de não se suster, ser peça falsa. Talvez só agora
observemos que devemos a Hilda sua perspicácia e inteligência em afastar-se da
mesmidade dos temas no interesse de uma obra autossuficiente; que fez da
contradição e dos rigores estabelecidos dos discursos matéria vital para sua poesia
– coragem dispensada em muitos poetas e utilizada com o vigor necessário na
construção de uma obra desde sempre igualmente necessária.
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É, portanto,
um luxo o que seus leitores (os conhecidos, a nova geração que agora descobre
sua obra e os que ainda a encontrarão ao acaso e ficarão, primeiro abismados e
depois entregues a ela) têm agora em mãos. No ritmo das grandes reedições e
reorganizações da obra de importantes poetas – começou com Paulo Leminski (Toda poesia), depois Ana Cristina Cesar
(Poética), Waly Salomão (Poesia total) – comandadas pela Companhia
das Letras, Da poesia foi publicado
em 2017. Trata-se de um livro que reúne todos os livros de Hilda Hilst, que não
são poucos: Presságio, Balada de Alzira, Balada do festival, Roteiro
do silêncio, Trovas de muito amor
para um amado senhor, Ode
fragmentária, Sete cantos do poeta
para o anjo, Trajetória poética do
ser, Odes maiores ao pai, Iniciação do poeta, Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo, Exercícios para uma ideia, Júbilo,
memória, noviciado da paixão, Da
morte. Odes mínimas, Cantares de
perda e predileção, Poemas malditos,
gozosos e devotos, Sobre a tua grande
face, Amavisse, Via espessa, Via vazia, Alcoólicas, Do desejo, Da noite, Bufólicas, Cantares do sem
nome e de partidas. Muito desses títulos recuperados na edição agora apresentada
estavam há algum tempo fora de catálogo, embora, não tenham faltado esforços de
renovação sobre sua obra.
Agora, não é
apenas o registro de mais de cinco décadas de entrega à poesia, correndo sempre
o risco de enfrentar o profundo silêncio da chamada (e mesquinha) elite cultural
brasileira. Da poesia é a antologia
de uma vida; reúne ainda alguns poemas inéditos ou exercícios de escrita que ficaram escondidos
durante anos nos arquivos da poeta na mítica Casa do Sol ou na Universidade de Campinas,
de onde partiu os primeiros gestos de renovar o fôlego em torno de sua literatura.
Os rascunhos são pequenas chaves, um gesto, como é possível ler na apresentação
da antologia, de “observar de perto o processo criativo da poeta”, seu ímpeto e
trabalho com a palavra. Hilda Hilst é caso raro entre os poetas da literatura brasileira
porque não apenas construiu esse imponente império de palavras, mas porque nunca
esteve descuidada, mesmo quando quis estar, do zelo com a língua, sorvendo
sentidos, ampliando-os, ressignificando, oxigenando os foles da linguagem – ela
que, frequentemente, para mencionar outra vez a apresentação do livro aqui comentado,
inventava palavras.
Isto é, Da poesia afirma-se enquanto testamento
lírico, para correr o risco de nomear este projeto editorial com o mesmo título
empregado pela poeta num dos seus poemas. E não se faz um testamento apenas com
as palavras do autor – que no caso de Hilda Hilst são por si só suficientes;
faz-se ouvindo os de seu convívio e os ecos que já agora ressoam em torno de
outra obra, mais quista, possivelmente mais lembrada pelos estudiosos da
literatura, uma parte pequena da mesquinha elite cultural. Dos diversos ecos, o
leitor encontra a palavra de Victor Heringer, num posfácio elucidativo sobre a
biografia e a obra poética de Hilda, mais as vozes de Lygia Fagundes Telles,
quem desde nova manteve uma estreita relação de amizade com a poeta, Caio Fernando
Abreu, o moleque que se derreteu de amores pela enigmática mulher que deixou
todo o luxo e o convívio do falso brilho da cidade grande para viver entre cães
e palavras no sítio, e algum resquício da própria voz da autora em relação ao
trabalho de fabrico de seu universo.
“A poesia
tem a ver com tudo o que não entendo. Tem a ver com a solenidade diante do mundo.
Algo sagrado e importante que eu queria perder, e ela sempre vem quando estou
prestes a perder isso. A poesia é a hora dos trombones. Tem tudo a ver com esse
fio terra que eu quero contatar, uma ligação da vida com a intensidade”, assim
se refere a poeta na entrevista copiada no apêndice de Da poesia. Justamente, por isso, é sua obra do gênero um extenso
território, com altos e baixos e tecido com uma variedade de tonalidades, entre
o sagrado e o profano, o sublime glorioso-trágico e o rebaixamento do riso. É urgente redescobri-la. A oportunidade está lançada.
Dois poemas (o primeiro inédito)
Chora um pouco o amor que te tomei
E dei-o antecipadamente a ela.
Mas não chores demais. E também não esqueças.
Por que direi que ficarei contente
Se à tarde caminhares sobre o verde
com teu andar curioso e adolescente
Acompanhando um outro andar igual?
Eu não direi. Mas nunca me lamentes.
E também não esqueças do vento dos passeios
E os arabescos inúteis do pátio de recreios
Na visita de amor à pequenina irmã.
Como nos rimos então! Olhávamos o alto, a torre
O infinito e todos ao redor olhavam aquele chão!
Mas nunca me lamentes. Chora um pouco, isto sim
A brevidade crua deste amor presente.
Do acervo da Unicamp.
*
Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se preparava e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera
(A noite como fera se avizinha)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar... se te comove.
E sendo água, amor, queres, ser terra.
Muito bom.
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