sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Canudos não morreu



A guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido.
Euclides da Cunha, Os sertões

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Livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, Os sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior).
Antonio Candido, Literatura e sociedade


O crítico Antonio Candido define com essas palavras a relevância de Os sertões no panorama literário e cultural brasileiro. A obra publicada em 1902 é comumente apresentada pela crítica como marco do pré-modernismo por uma única razão: a de que os próprios modernistas, repudiavam o exagero da erudição e buscavam uma linguagem mais simples, saída dos usos comuns, muito embora, essa visão imediatista seja retrabalhada muitos anos depois, mas, ainda no fluxo do modernismo e das vanguardas na cena literária nacional, com os poetas do movimento concretista, por exemplo, que almejam a fusão alcançada na prosa de Euclides da Cunha (a do signo, significante e significado) além de uma reanimação da linguagem não considerando, por assim dizer, mais influências externas a ela.

Dado o conteúdo e a forma como que a obra se apresenta, sua monumentalidade se constitui sob vários aspectos, e um dos, é fato de, ao ser assim composta, não se ajustar a nenhuma categoria das criadas pela crítica; e, sequer ser possível ser acomodada facilmente ao que se tem convencionado como literatura. O livro de Euclides está entre a Geografia, a História, a Sociologia, a Antropologia, compreendendo propositalmente uma pluralidade de áreas do saber mas também pouco ou quase nada interessada em atender minimamente às convenções desses saberes, visto que seu autor copia, reinterpreta, justapõe uma quantidade diversa de informações sem o interesse que estas se adéquem a este ou àquele campo do saber. Propositalmente porque esta é uma obra que finda por ser a síntese do homem letrado de seu tempo: aquele cuja formação erudita se alinha ao domínio – ou nem isso, apenas a catalisação – dos diversos saberes produzidos pela ciência e pela alta cultura.

Não podemos esquecer ainda que o escritor, de educação militar, teve uma formação nos moldes do saber enciclopédico e racional dominante nos modelos educacionais desse meio no seu tempo. Se isso não serve aos vínculos pré-estabelecidos, serve para compreender porque não é este um livro fácil de localizar entre as grandes obras literárias; talvez, sem motivo ou interesse pré-concebido, Euclides relativiza as rígidas fronteiras dos saberes e mesmo as formas literárias. Pensemos tal como Barthes em Aula que, se essa é a maneira que melhor diz sobre toda grande obra da literatura, aí ainda se combinam ou convergem uma diversidade de campos do saber.

É possível se dizer que este é um livro dotado, em parte, de uma clara visão determinista acerca do homem; este é apresentado como produto do meio onde vive. Retirado do meio, o homem é incapaz de competir com ele próprio. Mas, em Euclides, todo esse determinismo ganha outros contornos ao modo dos gestos antropofágicos daqueles que mais tarde lhe repudiariam: a descrição sobre o homem do Nordeste, por exemplo, se marca pela fusão entre a retórica do erudito e a linguagem simples do interior do país. Além disso, esse gesto inaugura um tipo desconhecido aos do Centro-Sul do país e a obra acaba por antecipar, em cerca de três décadas, aquela que será a linha mestra da prosa de ficção da segunda fase do Modernismo, o romance regionalista. 

Os sertões, longe de querer classificar o texto euclidiano, é um documentário do que foi o reduto de Canudos. A versão oficial foi que aquele lugar agregou uma massa de revoltosos liderada por um louco revolucionário que agregava misticismo e política e perigava a estabilidade da República – malnascida, como todos os fatos mais decisivos para consolidação do Brasil nação. Essa versão é corrompida pela obra. Não é este o caráter mais nobre da literatura – corroer com verdades estabelecidas? Enviado ao lugar para dar voz à visão forjada pela imprensa e pelo poder político, isto é, testemunhar em favor da visão oficial, Euclides finda por contemplar outra possibilidade da história e oferecer-nos outro retrato, certamente mais fiel e autêntico. Escreveu um livro sobre a luta de um povo pelo seu reconhecimento, um testemunho sobre as tectônicas sociais do nascimento de um povo, e a denúncia do sobrepujamento do poder sobre os da margem. Os sertões é, por baixo de seu tecido narrativo, a história do desinteresse e do descaso que foi sempre a alavanca de grande parte dos governos brasileiros em relação aos pobres.

Não é possível chamar o que se narra de romance. O texto se constitui como uma epopeia com fortes infiltrações dramáticas. Epopeia porque é sobre a luta de um povo contra as intempéries dos que estão no Olimpo e mesmo o modo escolhido pelo autor para dar forma aos acontecimentos assim demonstram: a voz distanciada não é a de um narrador mas a de quem fala em seu próprio nome e por todos de maneira impessoal e deslocada. E dramática porque o desenvolvimento das cenas – desse ângulo escolhido pelo autor faz com que o leitor vivencie em cena o drama vivenciado pelo os do arraial de Canudos.

A primeira parte da obra, intitulada de "A terra", é a preparação de um cenário, meticulosa, dada num movimento de câmera que ora é uma miragem cartográfica, ora geográfica, distante como alguém que só observa/descreve um mapa de perto como se quem descreve é também sua parte. Um movimento que primeiro obedece uma linha de fora para dentro, mas ao adentrar mais ao que precisa contar logo revela a quem lhe assiste não haver linhas a obedecer, apenas um fluxo, como o de uma mente/olho que observa e lança esse olhar no papel e a partir de então esboça coordenadas para o cenário que se erige majestosamente. 

O sertão ou os sertões – o sertão está em toda parte, como dizia Guimarães Rosa – palco, da trama também nos chega através de uma rica carga de detalhes que mais parecem aqueles bordados coloridos tecidos pelas sertanejas, de tons diversos, vivos, pulsantes, engenhoso, que perde a vista de quem vê/lê. Esta primeira parte dá ao romance o caráter de Gênesis: primeiro a criação do mundo para depois povoá-lo com a vida. Detalhe interessante é que em sendo o sertão personagem maior da obra, os elementos que o compõe, enfeitando-o, como as árvores – juazeiro, umbuzeiro, jurema, mandacarus, xiquexiques etc. (verdadeiros apanhados biológicos de um bioma!) são também, além de elementos do cenário que se constrói, personagens atuantes do drama. Com o sertão elas sentem a seca e a fartura, padecem do mesmo processo cíclico que castiga tudo e todos e atuam na proteção do sertanejo contra a polícia.

A denúncia social está em toda obra; aqui, na primeira parte, sua plasticidade é invadida por esse tom: quando a voz que verbaliza o processo de desertificação – algo que tantos anos depois ainda se discute acaloradamente e pouco tem sido feito, afinal, continua-se Brasil afora as queimadas sem controle – ou quando aponta a necessidade de se fazer algo para a convivência com a seca, fenômeno atestado como processo climático que é tornado em condição de exploração política e econômica pelo homem.

A segunda parte intitulada "O homem" é o momento genesíaco de, uma vez formada a terra, o cenário, o palco, para o correr das ações, é necessário colocar persona em circulação, dá-lhes sopro, corda, movimento, para que se possam ser apuradas e processadas as cenas e, constituir-se o enredo; aqui, enredo não de vida, mas de queda, expulsão do paraíso e morte. O Gênesis transfigura-se em Apocalipse. Nesta segunda parte de Os sertões dá-se a criação do homem/ interior do brasileiro/ sertanejo que trilhará o drama de Canudos, além, é claro, da constituição das figuras adjacentes, típicas personagens – o vaqueiro, o jagunço, o sertanejo etc. – figurantes ou coadjuvantes na empreitada. 

As reflexões da voz euclidiana se colocam para além das cartografias, geografias, biologias da primeira parte; entram em cena o espírito de um historiador/ antropólogo que se mostra no mesmo movimento de olho perscrutador, fino nos detalhes, para refletir a constituição desses seres.  Aqui reside o caráter fundamental que se vai distanciar do Gênesis: não estamos acompanhando um sujeito de vara de condão nas mãos dizendo “faça-se a luz”, “faça-se o dia”, faça-se a noite”, “faça-se isso”, “faça-se aquilo”, e tudo vai surgindo como que num passe de mágica, não, estamos acompanhando um sujeito que tem o faro científico e o entendimento de que tudo é um processo gradativo, lento, que se dá na corrente lerdeza dos séculos e das transformações histórico-culturais assim como na natureza suas formas se transformam pelo trabalho das forças que lhe regem. Também assistimos uma voz entusiasmada com os fatos culturais, religiosos e com a formação de espaços outros que se esboçam nessa cena maior que é o sertão, até que damos com Antônio Conselheiro, figura mítica para a obra que, da maneira como se integra à paisagem, não perde nunca o halo que lhe envolve. Ou seja, o olhar dessa epopeia confunde-se com o do povo sertanejo, quer, de alguma maneira, traduzi-lo, sê-lo.

A terceira parte de Os sertões, não é nominada inocentemente. "A luta". Assistimos o que foi o desenrolar real de um drama trágico da nossa história e de suas camadas se desprendem a compreensão sobre aspectos diversos como o da formação do interior do Nordeste: é o correr das cenas, depois de montada a arena povoada. Povoada de cangaceiros, jagunços, o que o olho de Euclides aponta nesse apocalipse são as pelejas, as rixas, que a sangue e valentia delineiam a cara do sertão. É outro Brasil o que se vê. Bem distante da beleza e pacificidade com que narra as páginas tradicionais da História. Se por entre os fatos históricos se mesclam ficções, não deixamos, entretanto, de ter em mãos um rico documento dessa formação das veias internas do país, que se deu a custo de sangue, desde as rixas pequenas, as de entre famílias, às maiores, que envolve povo, polícia e Estado, preservando a compreensão da forma dessa obra que se entrega em verificar as reverberações das pequenas situações nas maiores.

Preservado está também a memória do que foi a saga de Canudos – fulcro da terceira parte do livro. Aqui o leitor assiste claramente o embate que sempre foi motivo para os jogos de imposição dos poderes de uma classe abastada sobre os mais necessitados. Não há preservação de face: o militar despe-se totalmente da farda, o jornalista do de ser porta-voz favorável à manutenção de uma farsa criada pela política.

Assim, numa lista de obras fundamentais para compreender o Brasil, esta, certamente, nunca deverá faltar. Ela é, como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Vidas secas, de Graciliano Ramos, Macunaíma, de Mario de Andrade, Quarup, de Antonio Callado, Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, entre outros, elemento de nosso genoma; são visadas muito coerentes sobre nossa identidade e sobre a quantidade diversa de questões que nos afligem enquanto povo, sendo que, o livro de Euclides da Cunha,  trata-se de um projeto que visa amalgamar a força e a riqueza da nossa linguagem com a escrita de registro e denúncia sobre um dos episódios mais tristes e dramáticos da luta de classes no Brasil. 

Há algo nesta obra que faz dela ponto de acesso entre o tempo que lhe antecede e este que agora o sucede: a constatação sobre, em nome de um desnecessário alinhamento das conjunturas internas com as transformações internacionais, promover toda sorte de intervenções em que os grandes ganhadores são também os forjadores e amplifica ou reanima aquela corrente de forças entre esses, os tais que se sentem donos do poder, e o povo, ora excessivamente acomodado e desmotivado por uma coletividade ao ponto de pactuar com os opressores o desejo de opressão sobre os que anseiam por uma modificação do status quo retrógrado e impositivo de uma classe.

O que aconteceu em Canudos – quando Euclides pensava estar diante de, finalmente um levante dos oprimidos neste país de conformados – é o que acontece todos os dias nas derrotas individuais porque passam os sujeitos da periferia social brasileira e em larga escala o que se repete no escamoteio à força de um projeto político que, com todas as falhas e erros, terá produzido entre os mais simples a possibilidade de romper com o ciclo vicioso que nos persegue desde quando uma nação achou por bem fazer desse novo mundo um lugar de exploração, paraíso de assaltadores, e ilha da bonança para agradar bolsos alheios. 

O impulso sonhado por Euclides da Cunha, quando soube das primeiras resistências do arraial de Canudos, não se desfez com a escrita de Os sertões, embora aqui prevaleça o sufocamento da utopia e não a condição de se engendrar o que os franceses já no seu tempo há muito haviam feito, uma Revolução. Assim, não é perigoso falar que, dentre todas as forças enformadoras deste livro, um embate está entre o plano da razão cerceadora e o do sonho libertador.



Isso evidentemente só foi possível porque o escritor, depois de deixar a farda, e ir encontrar com o centro de um estopim, em 1897, a convite do jornal O Estado de São Paulo, – ao menos como fora pintado pelos mesmos aparelhos que agora atuam no balanço da maré mas ainda em comunhão com seus interesses sensacionalistas – descobriu na força de Canudos aquela possibilidade que sempre se construiu pelo seu avesso: não há unidade política entre povos considerados não-civilizados ou entre grupos pisoteados pelo poder, como muito se disse dos trabalhadores braçais e das mulheres. Aí, o então jornalista não apenas pode desconstruir essa visão um bocado deturpada como expor, mesmo indiretamente, as artimanhas do poder cerceador.

Claro, a Euclides nunca lhe deu orgulho a farda e contra os militares, por exemplo, não se preocupou em deixar suas alfinetadas nOs sertões – essas percebidas com largo desprezo pelos da farda (“multidão criminosa e paga para matar”, “mercenários inconscientes”, “a lei do cão”, “mundiça”). A quantidade diversa de artigos que escreveu sobre o massacre de Canudos se revelava o que poderia sair de uma testemunha ocular mas não levantava suspeitas de que o livro fosse uma radiografia ainda mais profunda do que se passou aí.

Este é um título que se apropria dos mais diversos saberes para reinterpretar a história de formação do povo brasileiro e humanisticamente colocar o país ante sua imagem vil e despótica. Já se disse que este livro rompeu com os ideais novos da República que visava loucamente a modernidade, revelando o outro lado do progresso desenfreado. A partir desse ponto de vista, é preciso dizer que Os sertões colocou na pauta das discussões a hipocrisia e a farsa como estratégias dos donos do poder interessados tão-somente em, antes de resolver qualquer coisa, varrer para debaixo do tapete aquilo que injustifica seu status quo para o mundo externo.  

Por tudo o que foi dito, deve ter ficado claro que, Os sertões é certamente uma das obras que reflete diretamente a constituição/ formação do Brasil e seus embates mais dramáticos. “Não temos uma unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca”; “Não há um tipo antropológico brasileiro”. Sem perder o caráter literário, Os sertões, também é o um rico documento histórico quando atesta os movimentos misóginos que povoaram o País a remontar à chegada dos portugueses. É, como documento, fotografia do poder opressor que sempre este pisoteando os mais fracos. Entretanto, é o sertanejo, antes de tudo, não fraco, mas um forte – parafraseando a célebre passagem da obra: “O sertão é homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa.”


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