A guerra de
Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurreta e
em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada
por um doido.
Euclides da
Cunha, Os sertões
*
Livro posto
entre a literatura e a sociologia naturalista, Os sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo
literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais
importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições contidas na
diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior).
Antonio
Candido, Literatura e sociedade
O crítico
Antonio Candido define com essas palavras a relevância de Os sertões no panorama literário e cultural brasileiro. A obra
publicada em 1902 é comumente apresentada pela crítica como marco do
pré-modernismo por uma única razão: a de que os próprios modernistas, repudiavam
o exagero da erudição e buscavam uma linguagem mais simples, saída dos usos comuns,
muito embora, essa visão imediatista seja retrabalhada muitos anos depois, mas,
ainda no fluxo do modernismo e das vanguardas na cena literária nacional, com os poetas do
movimento concretista, por exemplo, que almejam a fusão alcançada na prosa de
Euclides da Cunha (a do signo, significante e significado) além de uma
reanimação da linguagem não considerando, por assim dizer, mais influências
externas a ela.
Dado o
conteúdo e a forma como que a obra se apresenta, sua monumentalidade se constitui sob
vários aspectos, e um dos, é fato de, ao ser assim composta, não se ajustar a
nenhuma categoria das criadas pela crítica; e, sequer ser possível ser
acomodada facilmente ao que se tem convencionado como literatura. O livro de
Euclides está entre a Geografia, a História, a Sociologia, a Antropologia, compreendendo
propositalmente uma pluralidade de áreas do saber mas também pouco ou quase nada interessada em atender minimamente às convenções desses saberes, visto que seu autor copia, reinterpreta, justapõe uma quantidade diversa de informações sem o interesse que estas se adéquem a este ou àquele campo do saber. Propositalmente porque esta
é uma obra que finda por ser a síntese do homem letrado de seu tempo: aquele cuja
formação erudita se alinha ao domínio – ou nem isso, apenas a catalisação – dos
diversos saberes produzidos pela ciência e pela alta cultura.
Não podemos
esquecer ainda que o escritor, de educação militar, teve uma formação nos moldes
do saber enciclopédico e racional dominante nos modelos educacionais desse meio
no seu tempo. Se isso não serve aos vínculos pré-estabelecidos, serve para compreender
porque não é este um livro fácil de localizar entre as grandes obras literárias;
talvez, sem motivo ou interesse pré-concebido, Euclides relativiza as rígidas fronteiras
dos saberes e mesmo as formas literárias. Pensemos tal como Barthes em Aula que, se essa é a maneira que
melhor diz sobre toda grande obra da literatura, aí ainda se combinam ou convergem
uma diversidade de campos do saber.
É possível
se dizer que este é um livro dotado, em parte, de uma clara visão determinista
acerca do homem; este é apresentado como produto do meio onde vive. Retirado do
meio, o homem é incapaz de competir com ele próprio. Mas, em Euclides, todo esse
determinismo ganha outros contornos ao modo dos gestos antropofágicos daqueles
que mais tarde lhe repudiariam: a descrição sobre o homem do Nordeste, por exemplo, se marca
pela fusão entre a retórica do erudito e a linguagem simples do interior do
país. Além disso, esse gesto inaugura um tipo desconhecido aos do Centro-Sul do país e a
obra acaba por antecipar, em cerca de três décadas, aquela que será a linha mestra da
prosa de ficção da segunda fase do Modernismo, o romance regionalista.
Os sertões, longe de querer classificar
o texto euclidiano, é um documentário do que foi o reduto de Canudos. A versão
oficial foi que aquele lugar agregou uma massa de revoltosos liderada por um louco
revolucionário que agregava misticismo e política e perigava a estabilidade da
República – malnascida, como todos os fatos mais decisivos para consolidação do Brasil nação. Essa versão é corrompida pela obra. Não é este o caráter mais nobre da
literatura – corroer com verdades estabelecidas? Enviado ao lugar para dar
voz à visão forjada pela imprensa e pelo poder político, isto é, testemunhar em
favor da visão oficial, Euclides finda por contemplar outra possibilidade
da história e oferecer-nos outro retrato, certamente mais fiel e autêntico. Escreveu um livro sobre a luta de um povo pelo seu reconhecimento, um testemunho sobre as tectônicas sociais do nascimento
de um povo, e a denúncia do sobrepujamento do poder sobre os da margem. Os sertões é, por baixo de seu
tecido narrativo, a história do desinteresse e do descaso que foi sempre a
alavanca de grande parte dos governos brasileiros em relação aos pobres.
Não é
possível chamar o que se narra de romance. O texto se constitui como uma
epopeia com fortes infiltrações dramáticas. Epopeia porque é sobre a luta de um
povo contra as intempéries dos que estão no Olimpo e mesmo o modo escolhido
pelo autor para dar forma aos acontecimentos assim demonstram: a voz distanciada
não é a de um narrador mas a de quem fala em seu próprio nome e por todos de
maneira impessoal e deslocada. E dramática
porque o desenvolvimento das cenas – desse ângulo escolhido pelo autor faz com
que o leitor vivencie em cena o drama
vivenciado pelo os do arraial de Canudos.
A primeira
parte da obra, intitulada de "A terra", é a preparação de um cenário,
meticulosa, dada num movimento de câmera que ora é uma miragem cartográfica,
ora geográfica, distante como alguém que só observa/descreve um mapa de perto
como se quem descreve é também sua parte. Um movimento que primeiro
obedece uma linha de fora para dentro, mas ao adentrar mais ao que precisa contar
logo revela a quem lhe assiste não haver linhas a obedecer, apenas um fluxo, como o de uma
mente/olho que observa e lança esse olhar no papel e a partir de então esboça
coordenadas para o cenário que se erige majestosamente.
O sertão ou
os sertões – o sertão está em toda parte, como dizia Guimarães Rosa – palco, da
trama também nos chega através de uma rica carga de detalhes que mais parecem
aqueles bordados coloridos tecidos pelas sertanejas, de tons diversos, vivos,
pulsantes, engenhoso, que perde a vista de quem vê/lê. Esta primeira parte dá
ao romance o caráter de Gênesis: primeiro a criação do mundo para
depois povoá-lo com a vida. Detalhe interessante é que em sendo o sertão
personagem maior da obra, os elementos que o compõe, enfeitando-o, como as
árvores – juazeiro, umbuzeiro, jurema, mandacarus, xiquexiques etc.
(verdadeiros apanhados biológicos de um bioma!) são também, além de
elementos do cenário que se constrói, personagens atuantes do drama. Com o
sertão elas sentem a seca e a fartura, padecem do mesmo processo cíclico que
castiga tudo e todos e atuam na proteção do sertanejo contra a polícia.
A denúncia social está em toda obra; aqui, na primeira
parte, sua plasticidade é invadida por esse tom: quando
a voz que verbaliza o processo de desertificação – algo que tantos anos depois
ainda se discute acaloradamente e pouco tem sido feito, afinal, continua-se
Brasil afora as queimadas sem controle – ou quando aponta a necessidade de se
fazer algo para a convivência com a seca, fenômeno atestado como processo
climático que é tornado em condição de exploração política e econômica pelo homem.
A segunda
parte intitulada "O homem" é o momento genesíaco de, uma vez formada
a terra, o cenário, o palco, para o correr das ações, é necessário colocar
persona em circulação, dá-lhes sopro, corda,
movimento, para que se possam ser apuradas e processadas as cenas e,
constituir-se o enredo; aqui, enredo não de vida, mas de queda, expulsão do paraíso e morte. O Gênesis transfigura-se em Apocalipse. Nesta segunda parte de Os sertões dá-se a criação do homem/ interior do brasileiro/
sertanejo que trilhará o drama de Canudos, além, é claro, da constituição das
figuras adjacentes, típicas personagens – o vaqueiro, o jagunço, o sertanejo
etc. – figurantes ou coadjuvantes na empreitada.
As reflexões
da voz euclidiana se colocam para além das cartografias, geografias, biologias
da primeira parte; entram em cena o espírito de um historiador/ antropólogo que
se mostra no mesmo movimento de olho perscrutador, fino nos detalhes, para
refletir a constituição desses seres. Aqui reside o caráter fundamental
que se vai distanciar do Gênesis: não estamos acompanhando um sujeito de vara
de condão nas mãos dizendo “faça-se a luz”, “faça-se o dia”, faça-se a noite”,
“faça-se isso”, “faça-se aquilo”, e tudo vai surgindo como que num passe de
mágica, não, estamos acompanhando um sujeito que tem o faro científico e o
entendimento de que tudo é um processo gradativo, lento, que se dá na corrente
lerdeza dos séculos e das transformações histórico-culturais assim como na
natureza suas formas se transformam pelo trabalho das forças que lhe regem.
Também assistimos uma voz entusiasmada com os fatos culturais, religiosos e com
a formação de espaços outros que se esboçam nessa cena maior que é o sertão,
até que damos com Antônio Conselheiro, figura mítica para a obra que, da maneira como se integra à paisagem, não perde nunca o halo que lhe envolve. Ou seja, o olhar dessa epopeia confunde-se com o do povo sertanejo, quer, de alguma maneira, traduzi-lo, sê-lo.
A terceira
parte de Os sertões, não é nominada
inocentemente. "A luta". Assistimos o que foi o desenrolar real de um
drama trágico da nossa história e de suas camadas se desprendem a compreensão sobre
aspectos diversos como o da formação do interior do Nordeste: é o correr das
cenas, depois de montada a arena povoada. Povoada de cangaceiros, jagunços, o
que o olho de Euclides aponta nesse apocalipse são as pelejas, as rixas, que a
sangue e valentia delineiam a cara do sertão. É outro Brasil o que se vê. Bem
distante da beleza e pacificidade com que narra as páginas tradicionais da
História. Se por entre os fatos históricos se mesclam ficções, não deixamos,
entretanto, de ter em mãos um rico documento dessa formação das veias internas
do país, que se deu a custo de sangue, desde as rixas pequenas, as de entre
famílias, às maiores, que envolve povo, polícia e Estado, preservando a compreensão
da forma dessa obra que se entrega em verificar as reverberações das pequenas
situações nas maiores.
Preservado
está também a memória do que foi a saga de Canudos – fulcro da terceira parte
do livro. Aqui o leitor assiste claramente o embate que sempre foi motivo para
os jogos de imposição dos poderes de uma classe abastada sobre os mais necessitados.
Não há preservação de face: o militar despe-se totalmente da farda, o
jornalista do de ser porta-voz favorável à manutenção de uma farsa criada pela
política.
Assim, numa
lista de obras fundamentais para compreender o Brasil, esta, certamente, nunca
deverá faltar. Ela é, como Grande
sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Vidas secas, de Graciliano Ramos, Macunaíma, de Mario de Andrade, Quarup, de Antonio Callado, Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, entre outros,
elemento de nosso genoma; são visadas muito coerentes sobre nossa identidade e
sobre a quantidade diversa de questões que nos afligem enquanto povo, sendo
que, o livro de Euclides da Cunha, trata-se de um projeto que visa
amalgamar a força e a riqueza da nossa linguagem com a escrita de registro e
denúncia sobre um dos episódios mais tristes e dramáticos da luta de classes no
Brasil.
Há algo
nesta obra que faz dela ponto de acesso entre o tempo que lhe antecede e este
que agora o sucede: a constatação sobre, em nome de um desnecessário
alinhamento das conjunturas internas com as transformações internacionais,
promover toda sorte de intervenções em que os grandes ganhadores são também os
forjadores e amplifica ou reanima aquela corrente de forças entre esses, os
tais que se sentem donos do poder, e o povo, ora excessivamente acomodado e
desmotivado por uma coletividade ao ponto de pactuar com os opressores o desejo
de opressão sobre os que anseiam por uma modificação do status quo retrógrado e impositivo de uma classe.
O que
aconteceu em Canudos – quando Euclides pensava estar diante de, finalmente um
levante dos oprimidos neste país de conformados – é o que acontece todos os
dias nas derrotas individuais porque passam os sujeitos da periferia social
brasileira e em larga escala o que se repete no escamoteio à força de um
projeto político que, com todas as falhas e erros, terá produzido entre os mais
simples a possibilidade de romper com o ciclo vicioso que nos persegue desde
quando uma nação achou por bem fazer desse novo mundo um lugar de exploração,
paraíso de assaltadores, e ilha da bonança para agradar bolsos alheios.
O impulso
sonhado por Euclides da Cunha, quando soube das primeiras resistências do
arraial de Canudos, não se desfez com a escrita de Os sertões, embora aqui prevaleça o sufocamento da utopia e não a
condição de se engendrar o que os franceses já no seu tempo há muito haviam
feito, uma Revolução. Assim, não é perigoso falar que, dentre todas as forças
enformadoras deste livro, um embate está entre o plano da razão cerceadora e o
do sonho libertador.
Isso
evidentemente só foi possível porque o escritor, depois de deixar a farda, e ir
encontrar com o centro de um estopim, em 1897, a convite do jornal O Estado de São Paulo, – ao menos como
fora pintado pelos mesmos aparelhos que agora atuam no balanço da maré mas
ainda em comunhão com seus interesses sensacionalistas – descobriu na força de
Canudos aquela possibilidade que sempre se construiu pelo seu avesso: não há
unidade política entre povos considerados não-civilizados ou entre grupos
pisoteados pelo poder, como muito se disse dos trabalhadores braçais e das
mulheres. Aí, o então jornalista não apenas pode desconstruir essa visão um
bocado deturpada como expor, mesmo indiretamente, as artimanhas do poder
cerceador.
Claro, a
Euclides nunca lhe deu orgulho a farda e contra os militares, por exemplo, não
se preocupou em deixar suas alfinetadas nOs
sertões – essas percebidas com largo desprezo pelos da farda
(“multidão criminosa e paga para matar”, “mercenários inconscientes”, “a lei do
cão”, “mundiça”). A quantidade diversa de artigos que escreveu sobre o massacre
de Canudos se revelava o que poderia sair de uma testemunha ocular mas não
levantava suspeitas de que o livro fosse uma radiografia ainda mais profunda do
que se passou aí.
Este é um
título que se apropria dos mais diversos saberes para reinterpretar a história
de formação do povo brasileiro e humanisticamente colocar o país ante sua
imagem vil e despótica. Já se disse que este livro rompeu com os ideais novos
da República que visava loucamente a modernidade, revelando o outro lado do
progresso desenfreado. A partir desse ponto de vista, é preciso dizer que Os sertões colocou na pauta das
discussões a hipocrisia e a farsa como estratégias dos donos do poder interessados
tão-somente em, antes de resolver qualquer coisa, varrer para debaixo do tapete
aquilo que injustifica seu status
quo para o mundo externo.
Por tudo o
que foi dito, deve ter ficado claro que, Os sertões é certamente uma das obras que reflete diretamente
a constituição/ formação do Brasil e seus embates mais dramáticos. “Não temos
uma unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca”; “Não há um tipo
antropológico brasileiro”. Sem perder o caráter literário, Os sertões, também é o um rico documento
histórico quando atesta os movimentos misóginos que povoaram o País a remontar
à chegada dos portugueses. É, como documento, fotografia do poder opressor que
sempre este pisoteando os mais fracos. Entretanto, é o sertanejo, antes de
tudo, não fraco, mas um forte – parafraseando a célebre passagem da obra: “O
sertão é homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a
cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa.”
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