quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge: o homem é cruel, sobretudo, contra os da sua espécie



Não dá para reduzir A costa dos murmúrios a determinados rótulos que costumeiramente a crítica mais superficial terá insistido em fazer, como os de romance pós-colonial ou romance-denúncia ou ainda romance acerca da condição feminina. É verdade que cada um desses designativos, fruto de prevalência temática, não estão incoerentes para o que é este livro e terão seu valor a depender do ângulo de visão do leitor ou do recorte que o analista faça dele.

Ainda assim, sou capaz de teimar que, o ângulo específico ou o recorte seja prejudicial numa compreensão de maior amplitude, visto que é este um romance em que os tais termos que o podem designar não estão isolados, mas têm a força conjuntural da integração entre eles e sua plena atuação como estruturadores do que é a obra. Isto é, esta compreensão é favorável à afirmativa de que o leitor está ante uma peça narrativa única na recente produção literária contemporânea da língua portuguesa, uma vez que outros intuitos do gênero têm ficado restrito ora a um ora a outro dos temas ditos mais costumeiros no cenário pós-1974.

Não é à toa, portanto, que se trata de um título (da já vasta e significativa obra literária da escritora portuguesa) dos mais conhecidos, seja porque seguramente é um dos seus mais traduzidos e publicados fora de seu país, seja porque foi adaptado para o cinema pelas mãos da cineasta Margarida Cardoso em 2004. E porque é um romance cuja urdidura temática e formal são significativos para a obra de Lídia Jorge.

Seu enredo de construção fragmentária e com variações no tom da narrativa -- ora em primeira, ora em terceira pessoa -- é talvez a primeira força estrutural da obra visível ao leitor, sobretudo se este estiver tomado pela costumeira narração linear. Mas, é essa fragmentação do enredo o que garante a existência do romance tal como conhecemos no final de sua leitura, visto que, toda a linha de acontecimentos dessa obra já aparece dada de maneira reduzida no texto-conto que abre o livro e é sugestivamente intitulado por "Gafanhotos" e com epígrafe do poeta e jornalista moçambicano Álvaro Sabino.

Em "Gafanhotos", que narra o casamento de Evita, somos apresentados ao cenário e às personagens principais do romance. É também nessa espécie de introito que se instala a atmosfera paralisada que se mantém no decorrer da narrativa porque é -- o leitor atento desconfia -- a inserção de Lídia no território do chamado fluxo de consciência, no melhor estilo do praticado pelos escritores admirados pela romancista, de nomes do porte de um William Faulkner, por exemplo.

É do Stella Maris, um hotel de luxo de Beira, Moçambique, onde se dá toda a trama. Desde então, sabemos que o país retratado pelo ângulo de vista de Evita, por debaixo do Stella Maris, é o de fim dos anos 1960, o país no centro de um conflito colonial, no período ainda em que os portugueses instauram uma carnificina em nome do domínio de sua colônia. O fato é que o leitor não será, em momento algum, confrontado com o espaço heroico, por assim dizer (e melhor a ser dito seria o espaço de uma tragédia para lembrar as vozes dos primeiros romances de um conterrâneos de Lídia Jorge, o António Lobo Antunes) da frente de batalha. Do contrário. Todos os acontecimentos são filtrados por uma lente muito peculiar: o olhar de Evita, o olhar de uma mulher, de uma mulher pertencente ao país colonizador, uma personagem isolada em si e isolada, de certo modo, do universo real onde se processam os acontecimentos de guerrilha. O que não impede, e isso está claro, que a visão aí processada seja menos cruel da que possivelmente seria se fosse o campo de batalha o universo central da narrativa.

Nesse instante, devo fazer um parêntese para antecipar ou esclarecer duas coisas: uma, é que uma guerra não é apenas feita pelos que participam diretamente dos confrontos, mas é, e talvez, sobretudo, por aqueles que ficam distante dela. No romance, mulheres e famílias inteiras que saíram de seus espaços de origem para acompanhar seus maridos soldados numa imposição um tanto quanto ferrenha como é natureza de todo regime ditatorial (todas vivem em função dos maridos, à espera, no crochê, pelos cabelos passados a ferro...)

Outra coisa, a segunda, é que Lídia Jorge foge de quaisquer esteriótipo daqueles graves cunhados por uma leitura machista que insiste em tingir isto de escrita feminina ou de escrita masculina como se o sexo servisse à força ou à fraqueza da narrativa. A linguagem da violência, por exemplo, atributo que algum macho poderia ler como evidência textual masculina não é aí apresentada de forma delicada nem amena, como se a escritora adoçasse o tema ou, na pior das hipóteses, quisesse varrer para debaixo do tapete a sujeira histórica. Não. O retrato dos massacres e da matança indiscriminada de blacks -- como são tratados os negros africanos pelos seus algozes -- é só um exemplo disso que acabei de afirmar. Impera de ponta a ponta da narrativa entradas com as cores do que realmente foram os desastrosos projetos de colonização portuguesa cujas marcas são o pior da herança deixada nos países colonizados. E é a tomada de consciência dessa figura mais distante do conflito o centro formador da obra. Evita é quem, pouco a pouco, vê-se no interior do horror, de uma matança entre gentes da mesma espécie e das maneiras mais cruéis possíveis.



Ao casar-se com Luís, se não um matemático de nome, mas um estudante de matemática com futuro um tanto quanto promissor, Evita não imaginaria que ele fosse inserir-se nas forças armadas e ir ter em África na luta em nome de uma causa escusa. Com a desculpa de que nas forças armadas teria melhor condição de resolver sua questão financeira e consequentemente não se desvincular da matemática, o que Evita vê é o total apagamento da figura do Luiz (aí está os efeitos destruidores da ideologia sobre os indivíduos) por uma admiração no seu extremo limite, pelo seu comandante. Não se trata de nenhuma atração homoafetiva. Longe disso. Ou antes fosse isso. Mas, a paixão do Luís é outra: é pelo status e pelo poder que a presença do Forza Leal impõe a todos. Tanta admiração findará em nada. Luís -- e isso ficamos sabendo no "Gafanhotos" -- é assassinado pelos próprios da sua corja num coroamento de que ao poder nem os servos lhe são úteis.

Viúva, Evita se dará ao "trabalho" de entender esse complexo cenário, compondo desde então, um gesto que é o de descoberta de sua própria lucidez nesse cenário tresloucado. Gesto significativo será o seu despir-se do "Evita" para ser tratada por "Eva" e o distanciamento que vai ocupando em relação ao seu recente marido -- de "Luís" para "o noivo". Essa variação de identidade propositalmente construída pela romancista é significativo porque, entre outros sentidos daí decorrentes, está a destituição do lugar de alguém acima de todos (Evita é um nome imperativo e, claro, se o leitor for ao arquivo da história não lhe faltará motivos para essa compreensão) para o de portadora do saber, da descoberta, tal como a Eva do episódio bíblico de formação da humanidade.  

A costa de murmúrios firma-se pelo detalhe. Pelas curvas da memória. Pela busca de identidade que é um indivíduo, mas é também de um povo. A sua sintaxe é arma de reflexão sobre a humanidade e sua capacidade -- um tanto quanto extraordinária -- de perder-se (ideologicamente) em nome da dominação e do poder ou de enxergar-se,alcançar a lucidez necessária sobre o mundo; que este não é um aposento luxuoso do Stella Maris, nem os chamados momentos felizes da vida. O mundo é cruel e a força dessa crueldade é mantida pela linguagem quase única da razão dos homens: a guerra.

***

(fragmento do romance)

Era o capitão das imensas condecorações, o que possuía a tal mulher de cabelo ruivo em cachão.

"Não temos nada a ver com esta cegada" -- disse ele. "E para já tudo que devemos fazer é manter-nos à distância".

"Mas porquê?"

"Porque aí esses gajos, os blacks, descobriram no porto um carregamento de vinte bidons de álcool metílico que iam a caminho duma tinturaria, e pensaram que era vinho branco, e descarregaram-nos ontem de tarde, e abriram os bidons, e beberam todos, e distribuíram pelos bairros do caniço, e agora uns estão lerpando e outros vão cegar. Os que a maré trouxe foram só os que o mar encontrou, recolheu à beira e deitou. As praias vão mas é ficar coalhadas deles quando chegar a noite. Vocês vão ver. Os blacks! Vê-se mesmo que são ideias dos blacks!"

"Verdade?"

A explicação do capitão Jaime Forza Leal, com a camisa aberta sobre a nesga da cicatriz, era inesperada, mas ao mesmo tempo tão reveladora que várias pessoas do cortejo se sentiram a princípio chocadas pela estupidez, depois sentiram ódio pela estupidez e a seguir indiferença pela estupidez. Não se conseguia ter solidariedade com quem morria por estupidez como aqueles blacks. Entreolharam-se estupefactos. Já não importava quantos mainatos não tinham regressado ao seu subtil emprego. Já não importava -- e mulher oficial que vertesse uma lágrima, furtiva que fosse, por qualquer mainato desaparecida aquela noite, deveria ser considerada estúpida. De repente, as roupas de dormir em que a maioria se encontrava no hall roçagaram duma outra maneira. Tudo pareceu distinto do que tinha sido imaginado, ficando de súbito aquela madrugada sem piedade e sem beleza, já que havia um caso de estupidez atrás. Esse molho acre, e sudoroso, a estupidez. Como era possível? 





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