sábado, 7 de novembro de 2015

O corpo-máquina ou o interior do poema, notas sobre Corpo de festim



toda a vida contida numa exígua partícula,
– desdobrável de si própria –, equilibrada
sobre a mesma progressão desenfreada;
deuses ferveram-na numa caldeira aquecida
ante o clarão do big bang / cozeram-na por milênios,
lenta, nas tripas da mais velha estrela / e lá, aprisionada,
como o maior espetáculo da via láctea, além do limbo
centígrado dos organismos bioquímicos,
replicou-se a enzima de sua fina
( e elástica ) matematicidade
// até que [...]

Alexandre Guarnieri escreveu Corpo de festim, livro que integra o lento e sofisticado processo de lapidação poética porque passa todo poeta comprometido com a palavra. Sim, porque sempre existiu, mas tem ganhado forma sempre com mais cinismo, o poeta criador de formas falsamente manipuláveis e, logo, facilmente quebráveis ao dinamismo do tempo. Não é porque o material verbal que o poeta utiliza é estranho ao universo acusado tantas vezes de pertencer às formas frágeis. Não. É o trabalho intelectual de maturação da palavra, condição inescapável a que poema está submetido desde a sua separação do lugar de evasão subjetiva ou esforço lírico mantido pela força do sentimentalismo. Isso é que se apresenta logo à superfície do poema. Isso é que dá ao poema a dimensão laminar. O poema deve ser lâmina. Faca que abre a carne do tempo. Objeto de montar. Peça de um corpo. Um corpo. Um poema não se sustenta apenas do espanto, da liquidez, da matéria repisada. Como criação, um poema só se sustenta como organismo.

Quando cruzei os olhos por sobre o título (Corpo de festim), o último termo me arrastou para um tempo quando li poço, festim, mosaico – um dos primeiros livros da poeta Marize Castro. Os dois nomes e as duas poéticas estão muito afastados pela forma: sim, uma coisa é apenas um suntuoso banquete, assim, solto entre a marca escura e colorida; outra, é o corpo tornado suntuoso banquete, tornado matéria de exploração particular. Mas, há, além do mesmo termo (festim), uma linha que leva de Marize Castro a um poeta como Alexandre Guarnieri.

(É uma convicção muito arriscada a que ofereço, mas o que é a crítica diante de poesia, se não uma voz que se arrisca? Ou nos arriscamos ou não saímos da mesmice que nos embebeda e depois faz pose com tapinha nas costas para as redes sociais.)

Esta obra dividida em três “capítulos” – nascida dessa averiguação microscópica da existência, como se apresenta no poema-epígrafe e ponto de partida destas notas, até o fim, quando o corpo banqueteado é tornado, de novo, microscopia simbólica – não provoca a impressão do lirismo como sucede ao leitor da poeta de poço, festim, mosaico. Na obra em análise aquilo que dá forma ao poema é extraído da matéria orgânica ainda viva; o corpo em festim é uma complexa máquina cuja percepção do poeta é de fotografar com palavras seus membros, seu funcionamento, seus fenômenos,  que ora são separados como se peças e o que produzem: “o sangue”, “o suor”, “do sêmen ao leite materno”, “a urina”, “a pele”, “a cabeça” – para mencionar apenas alguns destes textos de Corpo de festim. Sua poética se nutre, assim, de uma maior objetividade. É o uso pleno da razão como enforme do poético. É como se nela contivesse aquela dimensão mais bruta da existência. Claro que há nisso tudo certa natureza singela.

(E uno por minha conta as pontas da linha que tentei visualizar entre duas poéticas diversas, não para dizer que uma é melhor ou está acima da outra, mas para ressaltar as particularidades do eu-poético.)

Corpo de festim colocou-me ainda diante de outra sentença – a gestada por Francis Ponge sobre seu método criador (My creativ method): “PARTI PRIS DES CHOSES / ÉGALE / COMPTE TENU DES MOTS”. Apesar de Alexandre Guarnieri não se utilizar de choses (nessa obra não, mas em Casa das máquinas, livro anterior, sim) – quando muito torna matéria e formas orgânicas em coisas – aqui se trata, como na sentença de Ponge, numa verbalização, ou mais exatamente, numa transformação em palavra daquilo a que palavra se refere. Ao ponto de, se não palavras no dicionário que signifique aquilo que poema pede para significar é da competência do poeta criá-las ou enlarguecer sua estrutura gráfica por outros elementos fazendo do texto um exercício pictural. Como em Ponge, o essencial desse fazer poético é a compreensão da função da palavra, não propriamente com a de designação da coisa, mas a de ideia ou noção do seu significado. Esse método criador, evidentemente, não anula o sujeito ou voz lírica diante do referente, afinal, a noção de significado do signo continua sendo atribuição subjetiva (novamente, coincide-se um e outro fazer poético, reabrindo, para logo fechar, a linha entre Alexandre Guarnieri e Marize Castro).



Alexandre Guarnieri compreende que o processo de criação da linguagem poética deve procurar possibilidades em áreas esgotadas de significado; constrói, com isso, um reaquecimento da linguagem. Também não prende o poema à sua natureza espartilhada e recuada num canto escuso da página. A força com que constrói determinados artefatos poéticos – e aqui penso em títulos como “ânus humano ( . ) ônus santo”, “[ ] corpo de prova [ ]”, para citar dois exemplos – não permite acomodar-se em fronteiras determinadas. A poesia não é apenas lâmina. É também o jorro do corte. A linguagem e a forma poética constituem-se, assim, em dois problemas especificamente poéticos.

O esforço linguístico em achar a palavra que exprime o que o poeta quer referenciar não se atém à medida métrica, rítmica, sonora, isto é, à forma, embora, compreenda que há nos poemas jorrados como esses dois que citei acima como exemplos um movimento musical muito bem construído. Se leio “ânus humano ( . ) ônus santo” em voz alta consigo fazer com que a leitura se dê quase de maneira cavalgada. O poeta está no limiar da construção lírica tradicional e moderna. É evidente que, nesses poemas em diálogo com a prosa, o predomínio da linguagem, seu absolutismo, se constitui na forma destruidora da lírica. A poesia de Alexandre Guarnieri é um festim verbivocovisual, para fazer chegar aqui um termo caro à poesia concreta que trabalha a palavra a ponto de torná-la artefato visual.

Por fim, depois de comentar sobre o trabalho de maturação sobre a palavra – que poéticas como a de Corpo de festim deixam sugerir – busco também um termo (afinal será outro o trabalho da crítica se não maturação sobre a palavra?) cujo interesse não seja o de reduzir, classificar ou determinar, mas compreender essa obra. Corpo de festim se constitui numa cartografia sobre o corpo. É uma obra fronteiriça com a forma de um atlas. Ou o olhar sobre um atlas. Olhar não perscrutador, tão somente; nem só imaginativo ou imaginário; de nenhum modo contemplativo. É um olhar criador de formas. Uma necropsia de natureza verbal sobre uma estrutura que não é só órgãos e sistema. O corpo é também discurso. É um sopro, objeto. Nada.  É materialidade constituída e determinada pela palavra que o desenha. Ou substância química. Átomo. Duas unidades comprimidas que se confunde forma condensada do dizer poético que Alexandre Guarnieri ora comprime (volte a reler o poema que abre essas notas) ora deixa jorrar, um big-bang.

Seja do ponto de vista formal e criativo, seja do ponto de vista temático, Corpo de festim se apresenta, desde já, como um título fundamental para cena literária brasileira porque não se habitua aos fenômenos gastos e fartamente utilizados pela poesia de apelo midiático. Como disse na ocasião em que li Casa das máquinas, Alexandre Guarnieri busca se filiar a uma extensa tradição do verso, sorve poéticas renegadas ao fora do cânone (e penso aqui, em quantos ecos pude ouvir da poesia de Souzalopes, um nome cujo trabalho de apresentação pública tem sido um dos exercícios do próprio poeta de Corpo de festim) para compor uma poética muito particular e sobretudo compromissada com o caráter real da poesia: ser criação.

Dois poemas de Corpo de festim 

\\ livro aberto //

de pele é revestido o corpo, tecido
vivo \ no livro, chama-se capa
(o couro sob o título) \ abri-lo:
gráfico grito \ mas como ouvi-lo
se é branco o ruído da celulose,
- tão silenciosa? todo livro fechado 
se cala \\ cada nova leitura o amplia.

de órgãos o corpo é preenchido,
de vírus, microrganismos, avisos / 
no livro, diz-se texto / há páginas
em que apenas a aparência é pueril / 
decifrá-las, nem sempre é fácil, há vários
níveis de sentido ou, ainda, na entrelinha, 
o seu estilo // neste exercício: o mais difícil.

[| a pele |]

homem-bomba vestindo roupa de escafandrista, seu
neoprene pressurizado capta estímulos, e por entre
pelos mínimos, válvulas regulatórias fazem-na suar
ou ressecar, contra as condições do habitat (algo
se interpõe aos poros, ou impermeabiliza as fibras);
seus sensores de calor, vigiados de uma sala
de controle, enquanto é mantida viva, (hidratado
adequadamente cada intrincado recanto) como
a máxima peça, de uma alfaiataria das mais complexas:
seria tão errado reduzi-lo ao tato, costurando 
ao tecido apenas um dos cinco sentidos?


***

Para o rol:

1. Na 10ª edição do Revista 7faces há mais poemas de Corpo de festim. Acesse aqui.


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