sexta-feira, 29 de junho de 2018

A arte e o artista são feitos de impressões

Por Pedro Fernandes 


 
Há uma passagem de Um artista do mundo flutuante importante de ser recuperada aqui porque, em parte, justifica a existência do próprio romance. Não é o caso, ressalte-se, que estejamos numa obra de cariz metaficcional – ao menos não diretamente. Preocupado com a reputação da família para o bom casamento da filha caçula, Noriko, Masuji Ono revisita algumas das figuras de Kawabe, aquelas mais próximas no seu passado. Numa das ocasiões, encontra-se diante de uma pintura que julga ser do amigo Kuroda; o jovem rapaz que o recebe responde, meio acanhado, que se trata de um trabalho de sua autoria. Admirado, o protagonista afirma que, antes de desenvolver um estilo que o defina, todo artista começa por imitar bem aos seus mestres.  
 
Esta passagem serve para dizer o mesmo de Kazuo Ishiguro. Um artista do mundo flutuante é o segundo romance do escritor nascido em Nagasaki, no Japão, e que ainda criança foi viver na Inglaterra. Este livro, juntamente com o primeiro, Uma pálida visão dos montes, copia, por assim dizer, alguns dos principais escritores de seu país natal, sobretudo aqueles que tomaram o impasse cultural entre Ocidente e Oriente depois da abertura deste continente – principiada pelo Japão do pós-Segunda Guerra – como elemento temático para suas obras. Quer dizer, se Ishiguro não copia diretamente um mestre especificamente, bebe na fonte que alimentou uma extensa parte dentre os mais importantes de uma extensa geração na literatura oriental. Claro que, no seu caso específico, o dado biográfico justifica com melhor propriedade essa consciência, tendo em vista que sua formação, como a de muitos outros escritores japoneses, dá-se noutra cultura, alheia à de sua origem. Embora tenha ido viver no Ocidente ainda muito criança não é possível deixar de sublinhar essa relação se considerarmos que os laços com a terra natal podem ter sido cultivados durante largo tempo de sua formação cultural.  
 
Como sublinha Ono em relação ao discípulo de Kuroda, a aproximação de Kazuo Ishiguro a um tema recorrente no interior da cultura artística a que se filia numa primeira ocasião não é coisa de se censurar ou reprovar – é um gesto que se encontra na origem de toda criação; não será mau recuperar o que Aristóteles apresentava na sua Poética, obra indispensável a qualquer leitor interessado em compreender determinados conceitos e fundamentos recorrentes até hoje nos debates sobre o texto literário. Falamos, evidentemente, da mimesis. Segundo este conceito, a criação do poeta é produto da imitação. E, como a personagem do seu romance, Ishiguro imita bem: escolhe uma recorrência entre a moderna literatura oriental e sobre a qual guarda uma experiência não apenas imaginária decorrente de seu universo criativo mas, de alguma maneira, autenticamente sua, se considerarmos os influxos entre a tradição dos de seu país natal e a modernidade dos de seu país de adoção. Ainda que este não seja o tema recorrente no romance em questão. 
 
Um artista do mundo flutuante é sobre os impasses de um artista que depois da abertura do seu país à cultura ocidental – abertura traumática, diga-se, porque se dá ainda entre os escombros produzidos pela guerra trazida por essa nova cultura que se impõe – num mundo, portanto, de contradições. Não é que Masuji Ono seja um artista no auge de seu projeto criativo; na idade que alcança a narrativa, a personagem contribuiu de alguma maneira para a tradição de seu país e agora se dedica apenas à organização de seu núcleo familiar, condição, aliás, que o torna alheado se considerarmos que na modernidade o fim de uma obra só é dado coincidindo o fim de sua própria vida e muitas vezes nem isso. O papel de Ono nesse mundo outro é um cada vez mais renegado, o da experiência – em todos os sentidos, não apenas no artístico. É singular a distância entre ele e seu neto Ischiro, constantemente apresentado tomado pelas referências do cinema ou da televisão estadunidense, e ainda impossibilitado, pela mãe do garotinho, Setsuto, a colocar em prática com ele, o que era comum às crianças no tempo antigo. Inesquecível a ocasião quando Ono promete a Ischiro que ele beberá saquê e vê sua promessa negada depois de aventar a possibilidade com Stesuto. A justificativa de que o gesto fomentaria a formação da memória da criança no que diz respeito a um orgulho próprio fundamental ao seu ego pessoal é derrubada em favor de uma política que impõe negar o total contato infantil com bebidas alcoólicas.  
 
Num mundo que descarta a experiência, o que resta então ao artista cuja obra de alguma maneira se apresenta constituída? Resistir. Em todos os sentidos, Um artista do mundo flutuante, é um romance de resistência. E esta vem pela memória. Narrado em primeira pessoa, i. e., pelo próprio Masuji Ono, ao passo que anota seu presente anódino, marcado pelo encontro com a filha mais velha, a convivência em tempos com o neto, e o trabalho do casamento da filha mais nova (há um filho sobre o qual tudo é silêncio), revive seu passado. E o passado de Ono justifica a posição mais ou menos cômoda que alcançou ao fazer parte indiretamente da memória de Akira Sugimura – quem “durante trinta e tantos anos, esteve inquestionavelmente entre os homens mais respeitados e influentes da cidade”.  
 


O trabalho de rememoração de Masuji Ono atesta sua transição entre um pintor movido pela reprodutibilidade técnica no ateliê-fábrica do sr. Takeda, sua saída para o ateliê do sr. Moriyama e o despertar definitivo para a condição do artista no mundo e qual seu papel para sua coletividade para além do mero intuito de aproximar-se, pela perfeição, do sublime e-ou conduzir o outro a este patamar espiritual. Mais que reanimar as linhas de sua existência, compreender-se no mundo da técnica, seu trabalho de revisitar o passado é de estabelecer-se contra o aniquilamento da tradição pela presença contínua de um espírito frívolo e decadente. Quer dizer, não é meramente um embate entre tradição e modernidade, no sentido que ficou recorrente noutras culturas depois da Segunda Guerra, é a observância sobre seu lugar no interior das várias transformações que vivencia: nos costumes familiares, na criação artística e nos modos de ver, ser e estar no mundo. 
 
É evidente que o mundo flutuante a que se refere o título do romance é o mundo moderno, mas nem Kazuo Ishiguro, nem seu protagonista estão interessados em fazer prevalecer, pela derrisão, a atmosfera de novidade construída pela abertura do Japão aos modelos ocidentais. Entre a percepção e a negação há uma extensa fronteira e neste caso é no território do primeiro onde se instaura o romance. Alguém poderá querer justificar que esta certeza é impossível porque este narrador não é de se fiar. É verdade que a incerteza é marca principal da narrativa de Masuji Ono – entretanto ela começa e finda no processo comum da rememoração. Ou seja, é possível que os episódios recordados não tenham acontecidos da maneira como são contados, ou sequer tenham acontecido, mas a posição do narrador, pendular, oscilante entre o passado e o presente, não deixa margens para uma negação do mundo como agora se lhe apresenta. Se há algo que acena para essa possibilidade é a maneira como o passado se mostra mais interessante que o presente, mas se sobre o passado não se pode obter certezas então este não é nenhuma ameaça – é apenas o lembrete de que não há presente sem passado e o apagamento da memória representa a ausência de consciência, que, por conseguinte, é o apagamento dos sentidos que sustêm a própria existência. 
 
Do final do romance, vale recordar uma situação que justifica o que dissemos acima – e encerra estas notas. Numa conversa que mantém com o genro sobre as reformas de pessoal realizadas na empresa, Masuji Ono, assim se posiciona: “me diga uma coisa, Taro, você não se preocupa com o fato de nós sermos, às vezes, um tanto apressados demais em seguir os americanos? Eu seria o primeiro a concordar que muitos dos velhos hábitos devem ser agora apagados para sempre, mas não acha que às vezes jogamos algumas coisas boas junto com as ruins?” A conclusão dessa fala, aliás, coloca em destaque outras linhas do romance de Kazuo Ishiguro – citada aqui uma, mas sem que nos aprofundemos nela: as personagens e as situações, de alguma maneira, constituem-se em metonímias do Japão pós-Segunda Guerra, ora demasiadamente seduzido com o modus vivendi do estadunidense, ora impossibilitado de reconhecer-se outro por se encontrar de alguma maneira ainda ligado às suas próprias forças.  
 
A relação entre Masuji Ono e o neto é o exemplo mais claro. Embora tomado de encantamentos com os objetos culturais estrangeiros, a criança não consegue a autonomia conceituada pelo avô quando o pensa livre o suficiente para tanto: é singular, na mesma ocasião desse diálogo a observação do narrador sobre o olhar atento de Ichiro sobre a garrafa de saquê que circula livremente na mesa de jantar enquanto sua expectativa de provar da bebida é cada vez mais colocada para longe. “Na verdade, às vezes o Japão fica parecendo uma criança pequena que aprende com um adulto estranho” – conclui Ono, nessa ocasião, para um genro, símbolo de uma nova geração que substituiu em definitivo o olhar sobre o passado pelas aberturas possíveis do futuro – um perigo que apesar de rondar tão claramente o entorno dos novos seduzidos só alcança ser visto pelos olhos da experiência.  
 
Ao negar sobreposições, Masuji Ono redime-se do passado – fantasma e segredo que percorrem toda a narrativa. Afinal, as contribuições de Ono para a arte no seu país ou a conclusão de sua carreira não são acontecimentos assim tão certos; estão no rol das flutuações da memória. Mas, sobre isto basta que se diga duas coisas: a arte nem sempre esteve à serviço do bem, se considerarmos a mais antiga das dicotomias; a melhor maneira de reparar um passado é reconhecê-lo, seja qual for a dimensão, e uma vez constatada sua condição negativa, não repeti-lo no presente. No mais, parece que não existe nenhuma dimensão heroica para a arte e o artista. É uma impressão.  

***
(fragmento da obra)

Se, num dia de sol, você subir o caminho íngreme que sai da pequena ponte de madeira que por aqui ainda chamam de “Ponte da Hesitação”, não terá de andar muito para avistar o telhado de minha casa entre os topos de duas árvores de gingko. Mesmo que não ocupasse uma posição tão proeminente no morro, a casa se destacaria de todas as outras da vizinhança, de forma que, ao subir o caminho, você poderá se ver perguntando que tipo de homem rico é o dono dela.

Porém eu não sou, nem nunca fui, um homem rico. O ar imponente da casa se justifica talvez se eu informar que ela foi construída por meu predecessor e que ele era ninguém menos que Akira Sugimura. Claro, você pode ser novo na cidade, nesse caso o nome de Akira Sugimura não vai te dizer nada. Mas mencione esse nome para qualquer pessoa que viveu aqui antes da guerra e vai descobrir que, durante trinta e tantos anos, Sugimura esteve inquestionavelmente entre os homens mais respeitados e influentes da cidade.

Se eu lhe disser isso e, quando chegar ao alto do morro, você parar e olhar o belo portão de cedro, a grande área cercada pelo muro do jardim, a cobertura com suas telhas elegantes e a cumeeira entalhada com estilo apontando para a paisagem, você pode muito bem se perguntar como eu pude comprar uma propriedade dessas, sendo, como eu digo, um homem de meios apenas medianos. A verdade é que comprei a casa por uma soma nominal — uma quantia que não era provavelmente nem metade do valor real da propriedade naquela época. E isso foi possível devido a um processo muito curioso — alguns diriam tolo — instigado pela família Sugimura durante a venda.

Isso já é coisa de uns quinze anos. Naquela época, quando minhas condições pareciam melhorar a cada mês, minha mulher começara a me pressionar para encontrar uma casa nova. Sempre previdente, ela argumentara que era importante termos uma casa à altura de nosso status — não por vaidade, mas em função das perspectivas de casamento de nossas filhas. Eu até via sentido naquilo, mas como Setsuko, nossa filha mais velha, ainda tinha apenas catorze ou quinze anos, não pensei nesse assunto com nenhuma urgência. No entanto, durante um ano talvez, sempre que ouvia falar de uma casa adequada à venda, me lembrava de tomar informações. Foi um de meus alunos quem primeiro trouxe a meu conhecimento que, um ano depois da morte de Akira Sugimura, sua casa seria posta à venda. Parecia absurdo que eu viesse a comprar uma casa daquelas e atribuí a sugestão ao respeito exagerado que meus alunos sempre tiveram por mim. Mas mesmo assim fui atrás de informações e obtive uma resposta inesperada.

Uma tarde, recebi a visita de duas senhoras altivas, grisalhas, que eram as filhas de Akira Sugimura. Quando expressei minha surpresa por receber tamanha atenção de uma família tão distinta, a mais velha das irmãs me disse friamente que não tinham vindo por mera cortesia. Que ao longo dos meses anteriores tinham recebido um bom número de pedidos de informações sobre a casa de seu falecido pai, mas a família decidira recusar todos, menos quatro solicitações. Essas quatro solicitações tinham sido selecionadas cuidadosamente pelos membros da família com base exclusivamente em bom caráter e realizações.

“É de grande importância para nós”, ela continuou, “que a casa que nosso pai construiu passe para alguém que ele teria aprovado e considerado digno dela. Claro, as circunstâncias exigem que se leve em conta o aspecto financeiro, mas isso é estritamente secundário. Diante disso, definimos um preço.”

Nessa altura, a irmã mais nova, que mal tinha falado, me apresentou um envelope, e as duas observaram, sérias, enquanto eu o abria. Dentro, havia apenas uma folha de papel, em branco, a não ser por um número escrito com elegância a pincel e tinta. Eu estava prestes a expressar minha perplexidade por preço tão baixo, quando vi nos rostos diante de mim que maiores discussões sobre as finanças seriam consideradas de mau gosto. A irmã mais velha disse simplesmente: “Não será interessante para nenhum de vocês tentar propor mais que o outro. Não estamos interessados em receber nada além do preço citado. O que vamos fazer daqui para a frente é realizar um leilão de prestígio”.

Elas tinham vindo pessoalmente, explicaram, para pedir formalmente, em nome da família Sugimura, que eu permitisse — ao lado, é claro, dos outros três pretendentes — uma investigação mais detalhada de meu passado e credenciais. Assim seria escolhido o comprador adequado.

Era um procedimento excêntrico, mas não vi nele nenhuma objeção; afinal, era a mesma coisa que estar envolvido numa negociação de casamento. Na verdade, eu me sentia um tanto lisonjeado por ser considerado um candidato digno da parte de uma família tão antiga e exigente. Quando dei meu consentimento para a investigação e expressei a elas minha gratidão, a irmã mais nova se dirigiu a mim pela primeira vez e disse: “Nosso pai era um homem culto, sr. Ono. Tinha muito respeito por artistas. Na verdade, ele conhecia o seu trabalho”.

Nos dias seguintes, fiz eu mesmo algumas investigações e descobri o que as palavras da irmã mais nova queriam dizer; Akira Sugimura tinha de fato sido um entusiasta das artes, e em diversas ocasiões financiara exposições de arte. Descobri também rumores interessantes: uma parte significativa da família Sugimura parecia ter se oposto absolutamente à venda da casa, e aconteceram acerbas discussões. Por fim, as pressões financeiras tornaram a venda inevitável, e o estranho procedimento em torno da transação representava as condições daqueles que não queriam que a casa saísse da família. Era inegável que havia algo de arrogância nesses arranjos, mas de minha parte eu estava disposto a entender os sentimentos de uma família com uma história tão distinta. Minha esposa, porém, não aceitou bem a ideia de uma investigação.

“Quem eles pensam que são?”, ela protestou. “Nós devíamos dizer que não queremos nada com eles.”

“Mas qual é o problema?”, observei. “Não temos nada a esconder. É verdade, não venho de família rica, mas sem dúvida os Sugimura já sabem disso, e mesmo assim nos consideram candidatos dignos. Eles que investiguem, só vão encontrar coisas vantajosas para nós.” E fiz questão de acrescentar: “De qualquer forma, não vão fazer nada além do que fariam se estivéssemos negociando um casamento com eles. Vamos ter de nos acostumar com esse tipo de coisa”.

Além disso, havia, sem dúvida, muito a admirar na ideia de “um leilão de prestígio”, como dissera a irmã mais velha. É até de imaginar por que as coisas não são resolvidas por esse meio mais vezes. Como é muito mais honrosa uma disputa em que são levadas em conta a conduta moral e as realizações em vez do tamanho da bolsa. Ainda me lembro da profunda satisfação que senti quando soube que — depois da mais minuciosa investigação — os Sugimura tinham considerado a mim o mais digno da casa que tanto amavam. E sem dúvida essa casa merece que se tenha sofrido alguns inconvenientes; apesar do exterior grandioso, imponente, por dentro é um lugar de madeiras naturais delicadas, escolhidas pela beleza de seus veios, e todos nós que vivemos nela viemos a considerá-la muito propícia para calma e relaxamento.

Apesar de tudo isso, a arrogância dos Sugimura se revelou durante toda a transação, e alguns membros da família não faziam a menor tentativa de disfarçar a hostilidade que sentiam por nós, e um comprador menos compreensivo poderia ter se ofendido e abandonado a coisa toda. Mesmo em anos posteriores, eu às vezes encontrava por acaso algum membro da família que, em vez da conversa polida usual, ficava lá parado na rua me interrogando sobre o estado da casa e quaisquer alterações que eu tivesse feito.

Hoje em dia, raramente escuto falar dos Sugimura. Porém, logo depois da rendição, recebi a visita da mais nova das duas irmãs que haviam me abordado na época da venda. Os anos de guerra a tinham transformado em uma velha magra e doente. Com os modos característicos da família, ela não fez nenhum esforço para esconder o fato de que sua preocupação era com a maneira como a casa — e não seus moradores — havia enfrentado a guerra; ela apresentou apenas a menor das comiserações ao saber de minha esposa e de Kenji, antes de partir para perguntas a respeito dos danos da bomba. Isso, de início, me indispôs com ela; mas então comecei a notar como seus olhos passeavam involuntariamente pela sala, como de vez em quando ela parava de repente no meio de uma de suas frases comedidas e formais, e me dei conta de que lhe vinham ondas de emoção por se encontrar de volta a esta casa. Então, quando suspeitei que a maior parte de sua família da época da venda estava morta agora, comecei a sentir pena dela e me ofereci para lhe mostrar tudo.

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