segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Uma ode ao destino

Por Pedro Fernandes



Uma ode ao destino, força indelével que nem sempre é coincidente com as determinações que criamos para nós mesmos. Assim é possível definir Uma sensação estranha, de Orhan Pamuk. Trata-se de um longo romance totalmente integrado à forma do Bildungsroman porque acompanha toda a trajetória, isto é a formação, da personagem Mevlut. O pai é um dos milhões de imigrantes que deixaram suas aldeias natal para ganhar a vida na cidade; essa história introduz o protagonista em cena, quando levado ainda criança para ajudar nos trabalhos do pai na venda de porta em porta de iogurte em Istambul. O périplo estrutura a própria narrativa e esta finda por construir um panorama bastante heterogêneo sobre a história universal do boom urbano que atravessa a história de milhares de lugares ao redor do mundo. Tanto é verdade que, todas as intensas transformações que tornam a capital turca de um lugar acolhedor e promissor a uma estranha selva de concreto, e os problemas decorrentes nesse processo são os mesmos encontrados, por exemplo, em qualquer grande centro urbano no Brasil. O leitor brasileiro ficará surpreso e em dúvida se este é mesmo um romance cuja história se passa em Istambul ou no seu país, que os males assumem a mesmas formas de lá aqui.

Orhan Pamuk constrói, assim, uma biografia, com cores deveras autóctone – isto é, por mais que nos perguntemos se isto mesmo que descreve é Istambul logo encontramos com os traços culturais que a definem – a um só tempo local e universal. Este talvez seja, dentre os vários aspectos significativos da obra, um dos principais. Escolher entre o nacional e o universal e situar uma narrativa numa ou noutra linha é simples se comparamos o sofisticado trabalho de equilíbrio entre uma e outra. E, ao que parece, tal possibilidade só ganha melhor forma se considerada por um escritor cosmopolita como Pamuk, que sabe os não-limites da mensagem literária. Antecede à obra uma pergunta que é: como tornar Istambul uma cidade significativa para um leitor que não é dela ou sequer a conhece? E a possibilidade, então encontrada, é alinhavar a biografia da cidade à biografia de um seu habitante que a percebe não como um historiador, um geógrafo ou um cientista social a percebe. A cidade de Mevlut é produto dos seus sentidos, logo o que ele vislumbra, além do registro sobre as cruéis transformações do espaço, seus aspectos históricos ou suas mazelas, é a construção de um sentimento, produto de uma rede diversa de afetos sobre a urbe. Desencarnada da perspectiva técnica, o olhar de Mevlut muito se aproxima dos nossos próprios afetos em relação aos nossos lugares e é este sentimento que torna uma narrativa que também é sobre Istambul próxima a nós.

A construção deste sentimento sobre a cidade não é possível, e isso se demonstra desde Baudelaire, sem uma inter-relação homem-espaço. Isto é, não é suficiente num romance a figuração de um habitante de Istambul; esse habitante prescinde está integrado, no sentido mais profundo do termo, ao espaço, numa maneira que as transformações num recorram de algum modo no outro. Então, esta personagem biografada em Uma sensação estranha é a encarnação da estirpe determinada por Walter Benjamin a partir da leitura do poeta de As flores do mal: um flâneur. A existência de Mevlut é o vagabundeio pelas ruas de Istambul, ora despretensioso, interessado somente em desanuviar das angústias que o perseguem, ora para garantir seu próprio sustento; como o pai, a personagem, depois de abandonar definitivamente a escola, ganhará a vida como pode e elegerá a venda de boza como uma espécie de extensão de um hobby. Assim, se garante ainda que a visão sobre a cidade se difira das determinações de um apaixonado por ela. Mevlut olha a cidade sempre com lentes de um curioso e não se permite se mostrar como alguém que ame ou odeie destemperadamente este espaço. Daí a lerdeza da qual todos lhe acusam, uma certa inocência de alguém que não se deixa corromper pelo meio, destituindo o princípio rousseauniano de que o homem é bom e a natureza onde se inscreve é o que o torna mau.

Embora não deixe de se envolver com algum deslize, em geral Mevlut é um homem comum e sem qualquer maldade ou ambição. A uma certa altura de uma das narrativas do romance, perguntam-lhe, o que ele faria se ganhasse na loteria e ele responde, que ficaria em casa brincando com as filhas. Num universo onde o capital é motivo que rege as vidas das pessoas – todas as personagens em Uma sensação estranha estão às voltas para garantir uma cômoda renda que os resgatem da miséria – a resposta dessa espécie de flâneur certamente deixa a desejar. E o exemplo maior de sua condição reside na maneira como aceita as coisas, não passivamente, tampouco resignado, mas de um modo que esteja adequado para os dois lados e o adequado para ele é que não lhe tire de seu sossego. Tão logo se descobre vítima de peça pregada pelo esperto capitalista Süleyman, de que a menina com quem foge e se casa não é a que viu pela primeira vez – o primo mente para Mevlut trocando o nome das irmãs com quem se correspondia, imbróglio que sustenta todo o romance – Mevlut poderia reivindicar uma vingança mortal para com o primo. Não o faz; a maneira que encontra de se vingar é construindo antes dele uma família dos sonhos, baseada no respeito mútuo entre cônjuges – caráter que falta a Süleyman – e na criação dedicada das filhas. Às injustiças, esta personagem parece responder com os gestos mais simples: “tenho o que me supre, melhor lutar pelo que eu quiser e o que tem de ser meu um dia haverá de ser”, parece nos dizer. A única ocasião que agirá de maneira contrária a esse princípio é quando inoculado pelo veneno de Samiha, sua segunda companheira, quem teima em não aceitar as condições impostas por Süleyman e o irmão na desapropriação do barraco de Mevlut para a construção de um dos gigantes edifícios que começa a dominar a paisagem da periferia de Istambul nos anos dois mil.

As mulheres desempenham um papel fundamental para o romance. Elas carregam todo um drama próprio de uma sociedade na qual os homens têm-nas como propriedades de uso sexual e reprodutor e o período que assinala entre a geração de Mevlut e a das suas filhas marca-se, ao menos na Turquia, por uma abertura sobre a individualidade feminina. Exceto Vediha, que o casamento é arranjado nos moldes antigos, Rayiha, a que se casa com Mevlut, e Samiha, a que se casa primeiro com o amigo de Mevlut, não aceitam a condição de servirem de produto de negociação do pai tampouco vozes mortas em seus lares. “Ninguém pode me comprar” ou “Quanto mais você conhece os homens mais difícil se torna amá-los”, diz Samiha. Sempre são as mulheres as que dão a última palavra, as apaziguadoras dos inúmeros conflitos, as que trabalham para a manutenção de seus sustentos, as que se opõem à maneira rude como os homens a enxergam, as que têm um arguta percepção das coisas; nesse sentido, são, em parte, mulheres livres e as que assim não se fazem, como Rayiha, que embora assumam uma liberdade, pagam com uma cota muito alta do caro preço que é tornar a existir em condição de subjugada porque a certa ocasião não terá o pulso de decidir sobre seu corpo e se manterá presa num impasse entre o que pensa e o que obrigam-na pensar. Já Fatma e Fevziye, as filhas de Mevlut têm a oportunidade pisar onde só pisavam os homens, como o ambiente acadêmico e de escolherem para si os companheiros para construção de suas famílias. 

O lugar de relevo do feminino no romance é atestado pela versão dos acontecimentos do ponto de vista das mulheres. O grande discurso de Vediha com uma lista de protestos sobre sua função de zelo pela família e o desmerecido trabalho de desconhecimento dos favorecidos com sua presença é simbólico porque atesta além da ação uma tomada de voz. Em Uma sensação estranha há um narrador em terceira pessoa, espécie de cronista, que tem domínio total sobre o que se narra, mas, cada uma das personagens se apresenta em primeiro plano na trama e revisa ou acrescenta informações sobre o acontecido. Se por um lado isso dá à obra, por vezes, a sensação de uma contínua repetição, que poderá tornar redundante e maçante para o leitor, por outro, é uma estratégia que dialoga com o “ideal de verdade” assumido e muito caro ao romance. Esta maneira de estruturação da obra lhe garante o designativo de romance-documentário. Inclusive as personagens muitas vezes dialogam – como as de um documentário dialogam com a câmera ou o entrevistador – com o narratário. Desse modo, Orhan Pamuk preserva não apenas a variedade de pontos de vista que dá forma ao acontecimento como sustenta o embate de forças contraditórias que mantém as várias tensões narrativas: as das relações pessoais, as sobre a história, as ideologias etc. O leitor não espere uma tomada de partido do romance. Seu interesse é unicamente contar uma boa história preservando os diversos pontos de vista e deixando ao leitor a liberdade de escolher qual possibilidade melhor lhe convém. Tal como sua personagem principal, que tem consigo seus princípios – e estes simpatizam com a tradição como se deixa entrever ao longo de sua trajetória e das suas opiniões – mas não se mostra em sua totalidade. Não é este um gesto covarde do romance; é uma estratégia meio picaresca de sobreviver num território tão minado como o que pisa. Ao mesmo tempo é um ponto de vista que almeja reunir a diversidade com que a realidade é percebida – aquilo que dá fôlego ao romance até os dias de hoje. Isto é, não ocorre aqui o que se suspeita num romance como As rãs, de Mo Yan, em que a guerra fratricida resultada da política do filho na China chega a ser descrita como se um mal necessário em nome da reorganização social do país.



Se é necessário falar sobre um ponto de vista específico em Uma sensação estranha – e este é formado pelas condições dos que narram – é dos desfavorecidos que lutam ininterruptamente para sobreviverem às condições cruéis impostas pelo próprio homem. É a percepção de um indivíduo que não se ajusta em nenhum dos modelos forjados por uma cultura alheia à sua, o que significa o contínuo estágio de estranhamento vivido por Mevlut. Quer dizer, há uma curiosidade nata da personagem de perceber-se no mundo e justamente por isso e porque não encontra fora um correspondente para o que traz consigo que se assume forma alheada. Também não é o caso de não tomar partido que faça desse sujeito – e desse romance – um silenciado em relação ao que vê. A revolta de Ferhat, o amigo principal de Mevlut, interessado na luta pela instauração de um modus social-comunista, por exemplo, expõe-nos a ganância desenfreada do capital em conluio com a desmedida ambição forjada pela religião. Não deixam de nos fazer perceber que em toda parte os governos agem de maneira covarde contra o povo quando não são seus interesses o que estão em voga; as alianças de mordaça entre Estado, Polícia e Mídia bem como o contínuo jogo de corrupções de toda sorte está mostrado ao longo da narrativa: “a cidade se tornara um viveiro de corrupção e suborno, e o governo assistia a tudo sem fazer nada”, observa o cronista; “A cidade já não era mais um lar imenso e acolhedor, mas um espaço impiedoso no qual quem podia acrescentava mais concreto, mais ruas, pátios, paredes, calçadas e lojas”, diz noutra ocasião.

A destruição do casebre construído pelo pai de Mevlut é cena máxima dessa transformação imposta pela especulação financeira do capital. E é um dos momentos marcantes de um romance que se constitui no impasse dramático entre a tradição e a modernidade porque compreende de maneira não muito esperançosa que qualquer possibilidade de retorno está condenada ao fracasso: o tempo do capital não responde por afeto nenhum, como se observa a condenação da venda da boza à maneira da herança otomana, e depois sua transformação em produto industrializado e agora tornado consumo absoluto, ou antes disso, a mercantilização em larga escala do iogurte e do sorvete, outras das subsistências dos ambulantes na Istambul até meados dos anos setenta ou ainda a substituição das embalagens feitas com jornais velhos pelas sacolas de plástico. Uma sensação estranha é um romance sobre transformações: sejam as positivas que rescindem um curso danoso da cultura, sejam as negativas que apresentam novas formas possivelmente mais danosas porque interessadas no apagamento da própria história e em consequência da dignidade humana.

Agora, por que é este um romance sobre o destino enquanto força determinante do que somos? O acaso resiste a todo aparato fornecido pelo advento do progresso; é o elemento que, muitas vezes, atenta contra nossas mais profundas certezas. O que estava predestinado a Mevlut, desde o início de seu itinerário se cumpre independente das escolhas que tenha tomado ao longo da vida; isso não é produto de uma narrativa que zelosamente quis fornecer uma saída à altura pelo esforço em nome da perfeição exercido por esta personagem. Foi a resposta oferecida em parte por sua condição de alheado. O cumprimento do destino é o repouso dos corpos em sua estabilidade procurada. 

***

(fragmento da obra)

Mevlut já estava em Istambul havia quarenta e três anos. Nos primeiros trinta e cinco, cada ano que passava parecia estreitar seus laços com a cidade. Nos últimos tempos, porém, ele se sentia cada vez mais alheio. Seria por causa da incontida maré humana que só crescia, os milhões de novas pessoas que acorriam a Istambul, as novas casas, arranha-céus, e centros comerciais que vinham de par com elas? Ele começou a ver a demolição de edifícios que estavam em construção quando de sua mudança para Istambul em 1969, e não apenas casas desmanteladas em bairros pobres, mas até bons edifícios em Taksim, e Şişli, que lá estavam havia mais de quarenta anos. Era como se os moradores daqueles velhos edifícios tivessem esgotado o prazo de viver na cidade. Como todas aquelas pessoas desapareciam com os prédios que haviam construído, outras se mudavam para os novos edifícios - mais altos, mais assustadores e com mais concreto do que nunca. Sempre que ele olhava aquelas novas torres de trinta e quarenta andares, Mevlut sentia que nada tinha a ver com as pessoas que nelas moravam.

Ao mesmo tempo, gostava de olhar os altos edifícios que haviam brotado em toda a cidade, e não apenas nas colinas distantes. Quando via uma torre nova pela primeira vez, não fazia um gesto de repulsa, como seus clientes ricos que zombavam de tudo o que era moderno, mas se enchia de um fascínio repleto de admiração. Que aspecto teria o mundo contemplado do alto de um edifício tão elevado? Esse era outro motivo pelo qual Mevlut queria ir logo ao jantar de Süleyman: assim poderia apreciar a magnífica vista que se descortinava daquele apartamento. 

Mas, devido à teimosia de Samiha, eles chegaram ao apartamento de cobertura depois de todos os demais. Mevlut sentara numa cadeira que dava não para a vista, mas para um armário envidraçado que uma caminhonete entregara a Melahat três meses antes. As crianças já tinham comido e se retirado. À exceção de Korkut e Vediha, Süleyman e Melahata, só se encontrava à mesa Abdurrahman Efêndi, que não dizia uma palavra. Tia Safiye não viera, a pretexto da doença do tio Hasan. Korkut e Süleyman haviam levado o pai a inúmeros especialistas tentando descobrir o que ele tinha, e ele continuava fazendo mais exames. Àquela altura, o tio estava farto de médicos; ele não queria ser examinado nem sair da cama nem do quarto. Detestava o edifício de doze andares em que morava; para começar, como não queria que fosse construído, quando saía, não queria ir a hospitais, apenas à mercearia, que era o foco de seus pensamentos e preocupações. Mevlut achava que se podia usar o terreno que ficava atrás da loja, que estava exatamente como quarenta anos antes, para construir um edifício de oito andares com cinco apartamentos em cada andar. (O próprio tio Hasan cercara o terreno quarenta e cinco anos antes.)

Eles ficaram assistindo ao noticiário na TV (o presidente viera à mesquita Süleymaniye em Istambul para as orações do feriado religioso) e conversaram durante a refeição. Mesmo que o tio Hasan estivesse alguns andares abaixo, ainda não se pusera a garrafa de raki na mesa. Por isso Korkut e Süleyman de vez em quando iam encher seus corpos na cozinha.

Mevlut também queria beber um pouco de raki. Ele não era como as pessoas que rezam e bebem mais à medida que envelhecem - ele continuava a beber pouco. Mas as coisas que Samiha dissera logo antes, na cozinha de seu apartamento, o tinham magoado, e ele sabia que se sentiria melhor depois de uns goles. 

[...]

Mevlut pegou sua cadeira e foi se sentar na sacada. Sentiu uma tontura momentânea, tanto por causa da altura como pela vasta extensão da paisagem que descortinava. A torre de que Korkut falara era de trinta andares que Hadji Hamit Vural construíra nos últimos cinco anos de sua vida, trabalhando dia e noite, como o fizera quando da construção da mesquita de Duttepe, e sem poupar nenhum recurso para que fosse a mais alta possível. Infelizmente, ela nunca haveria de ser um dos edifícios mais altos de Istambul, como ele gostaria. Mas, como a maioria dos arranha-céus da cidade, lia-se na fachada a palavra "TOWER", com letras enormes, escrita em inglês, embora lá não residisse nenhum britânico ou americano que justificasse.

Era a terceira vez que fora àquela varanda para ver a paisagem. Em suas duas visitas anteriores, ele não notara o quanto a HADJI HAMIT VURAL TOWER estorvava a visão de Süleyman. A Vural Holdings teve o cuidado de vender todos os apartamentos dos novos edifícios de onze andares de Kültepe antes de iniciar a construção da torre Hadji Hamit em Duttepe, que tirou a visão dos apartamentos de Kültepe. 

Mevlut notou que estava olhando para a cidade do mesmo ponto de vista que olhara quando seu pai o levou ao alto da colina, logo que ele chegou a Kültepe. Daquele lugar, quarenta anos antes, viam-se fábricas por toda a parte, e todas as outras colinas, que rapidamente se enchiam de novos bairros pobres, do sopé até o cume. Agora Mevlut só via um oceano de blocos de apartamentos de alturas diversas. As colinas das cercanias, outrora claramente distinguíveis por suas torres de transmissão de energia elétrica, agora estavam submersas, perdidas sob milhares de edifícios, da mesma forma como antigos riachos que corriam pela cidade haviam sido esquecidos, bem como seus nomes, tão logo foram asfaltados e cobertos por estradas. Mevlut mal conseguia evocar uma vaga imagem de cada colina - "Ali deve ser Oktepe, e ali, imagino, os minaretes da mesquita de Harmantepe" -, e isso só depois de muito pensar e de muita atenção.

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