Por Pedro Fernandes
Ao que parece
Elena Ferrante é uma das escritoras que melhor têm se dedicado aos temas do
universo feminino, sobre suas adversidades e condições numa cultura machista,
bem como os impasses acerca da emancipação das mulheres – situação em curso em
muitas culturas e noutras, lugar de vigilância contínua, porque o império do
falo ainda não foi totalmente subvertido e não são poucas as estatísticas que
atestam isso.
Não é só o
mundo da mulher a o que se descortina na literatura da escritora italiana. É
também a construção de um olhar a partir de uma perspectiva feminina sobre o macho
e as dinâmicas sociais, sobretudo nos seus diversos momentos de transformações que implicaram
nas redefinições das relações entre mulheres e homens e entre as mulheres e
seus corpos desde as décadas da emancipação para os dias de hoje. A infância, a
adolescência e a maturidade da mulher são parte do rico e amplo painel formado
pela tetralogia napolitana.
Nos quatro
romances se passam as multiperspectivas sobre uma Itália marcada pelo acirramento
das dicotomias: a das relações de classe, o embate patrões e empregados; a do
levante e a derrocada dos modelos de poder; a transição das violências, entre o
caráter explícito das rixas entre famílias às outras maneiras de
competitividade, marcadas ora pela política, ora pelo capital; a da ampliação
da máfia; a da abertura de certo poder aquisitivo a determinados grupos cuja
evolução capital não acompanhou uma evolução cultural, produto de um modelo
econômico pautado apenas no lucro e que grassa sociedades inteiras jogando-as
de volta à beira da barbárie.
Nesse cenário
heterodoxo, os dos romances fora das narrativas que acompanham a formação de
duas mulheres e com elas as variações sociais e históricas, os dramas perdem a
grandiosidade do universo coletivo. É aí que o leitor encontra Elena Ferrante
dedicada mais à minúcia dos dramas individuais de mulheres no âmbito de uma sociedade
que diz orgulhosa de reduzir o fosso das diferenças entre gêneros. O que, de um
todo, não pode ser encarado como uma verdade irrevogável. Não deixaremos de
notar o quanto a cultura falocêntrica ainda representa uma determinante social
danosa aos direitos e liberdades dos indivíduos não marcados pelo traço
hegemônico do macho.
Nesse
ínterim, as protagonistas de Elena Ferrante assumem de si para si um papel que
honra o tom de um libelo sobre essa constatação das infiltrações reincidentes
do império do falo, além de se encontrarem sempre em busca de sua autoafirmação
social que responda por aquilo que se demonstra melhor no plano idealizado que
no plano físico – o da igualdade de direitos e da interdependência das forças
na construção social e individual.
Em A filha perdida, Leda, uma professora
universitária de literatura cai, feito Alice na toca do coelho, num torvelinho
de situações desde quando, sozinha, depois que as duas filhas tomam a decisão de
saírem de casa, tenta restabelecer certa rotina de um tempo cuja força
inexorável é retomada – agora noutro contexto e por isso mesmo mais impactante.
Os episódios retomados pela narrativa recortam simbolicamente esse instante de
trânsito entre uma vida cujas forças haviam sido dedicadas integralmente para o
sustento da família e uma vida que agora, tomada de uma “estranha sensação de
bem-estar” se descortina ilusoriamente com as mesmas liberdades do tempo
anterior à maternidade; agora, com um diferencial, o da total independência,
isto que dá a Leda a falsa ideia de reassumir uma vida que ficara em suspenso
devido as obrigações impostas pela condição de provedora do lar.
Durante o
veraneio de junho Leda aluga um pequeno apartamento numa cidadezinha litorânea
e munida da ansiedade provida dos retornos, parte, despretensiosamente em busca
desse outro tempo. E se é verdade que toda ansiedade desemboca no insuspeito
mau-acaso, seja porque depositamos no que almejamos uma expectativa excessivamente
desnecessária e por isso mesmo o impacto tem suas dimensões, seja porque no
movimento contínuo da vida as repetições nunca se dão com as mesmas forças de
sentidos, claro, por uma razão muito óbvia, nós mesmos amanhã já não somos os
mesmos de hoje.
Assim, tudo
nessa estadia de Leda é marcado pelo estranhamento. A começar com o espaço novo
onde habitará por um mês: “Nunca se deve chegar à noite em um lugar desconhecido:
tudo é indefinido, todas as coisas dão uma impressão negativa. Deitei-me na cama
com o roupão e os cabelos úmidos e fiquei olhando para o teto, esperando o
momento em que ele se tornaria branco por causa da luz. Escutei o barulho
distante de um motor de popa e uma música indistinta que parecia um miado. Eu
não tinha silhueta. Virei-me sonolenta e rocei em algo no travesseiro que me
pareceu um objeto frio, feito de papel de seda”.
Desse instante
em diante tudo lhe será perturbação: a insistência (ou a percepção dela) do
homem responsável pelo apartamento que alugou para com ela; a ruptura da
tranquilidade e da paz de desfrutar a praia vazia sob os auspícios do belo
Gino; a sensação de deslocada num lugar onde o passado se revestia doutra aura e
já agora é totalmente carcomido pela frivolidade sem sentido dos sedentos por
alguma experiência capaz de subverter o conteúdo repetitivo dos dias comuns; e
o envolvimento que engatará despropositadamente com uma família “um pouco
barulhenta de napolitanos: crianças, adultos, um homem de uns sessenta anos com
expressão cruel, quatro ou cinco meninos que se enfrentavam ferozmente dentro
da água e fora dela, uma mulher grande com pernas curtas e seios enormes, que
tinha menos de quarenta anos, talvez, e se deslocava com frequência da praia ao
bar e vice-versa, arrastando com dificuldade uma barriga de grávida, o arco
grande e nu alongado entre as duas peças do traje de banho”.
Embora,
Ferrante não deixe de acentuar as diferenças entre os agrupamentos sociais ao colocar
tudo e todos sob o olhar atento, perscrutador e imaginativo de uma personagem
que lida diretamente com as diversas variantes humanas através da ficção e da
arte literária, é numa situação específica, que servirá de aproximação e
afastamento entre universos aparentemente tão distintos – o de Leda e o dessa
família de napolitanos, especificamente sob a “mulher extremamente jovem e a
menina”, Nina. Está, assim, composta a situação propícia para que esta
professora se engalfinhe de vez com sua memória sobre o passado que se impõe
enquanto continuidade na existência alheia: Leda percebe-se na jovem mãe,
enquanto esta se mostra encantada com a liberdade de Leda e vê nela a janela
pela qual seja possível tomar fôlego de sua vida entediada e de destino
aparentemente frustrado.
A relação
forjada entre as duas é a de espelhamento. As duas têm inveja de suas
projeções, mas como tal, a imagem nem sempre corresponde ao que espera seu contemplador.
Nesse sentido, como o leitor já terá observado noutras narrativas de Elena
Ferrante, nada deixará de ser casual na composição da trama; mesmo os espaços e
os objetos guardam uma variada forma simbólica no desenvolvimento dos universos
dramáticos feminino. São em ocasiões como estas que se nota em quão mais
significativo e completos são os universos ficcionais geridos pela perspicácia
do olhar feminino. Exemplo disso, A filha
perdida é a cadeia de significados que se desprendem de um drama aparentemente,
ainda menor nas vidas das duas personagens: a ação involuntária de Leda do
sequestro da boneca da filha de Nina depois de encontrá-la na praia. Esse gesto
corresponderá a recuperação pela memória do passado quando Leda largou a primeira
filha aos cuidados do pai para se dedicar à formação profissional e, por sua
vez, servirá de intervenção à repetição de outra perda de igual natureza,
quando Leda descobre do envolvimento do salva-vidas Gino com Nina, situação da
qual se torna confidente.
Assim o gesto
casual como o do rapto da boneca que se ampliará num drama de grande proporção – é comum
na narrativa de Ferrante: seja uma porta que emperra, seja o desaparecimento
repentino e os grandes esforços de uma filha por encontrá-la mesmo que a
relação entre as duas seja definida mais pela repulsa – é um recurso que se
reveste de extremo significado para a narrativa. No jogo de espelhamentos
propostos pelo romance, a escritora multiplica quase ao infinito o lugar da maternidade
e suas implicações na liberdade da mulher. O leitor notará que a boneca, enquanto
desperta o desmoronamento da vida da menina e por sua vez de Nina, serve a Leda
de reparação do tempo perdido quando deixou sua filha aos cuidados do pai e não
lhe acompanhou os primeiros desenvolvimentos da vida. Ou seja, este tema é
tomado aqui não pelas variantes sociais, mas pelas variantes psicológicas,
sobretudo suas ambivalências, cujas constituintes são impostas ora pela
natureza, de que a mãe é a responsável principal e primeira pela criação dos
filhos, ora pela cultura que prepara as mulheres desde a infância para cumprirem
com o designado pela natureza.
Não é
gratuita então a cena em que, depois de preparar todo o novo enxoval para a
boneca e quando o drama poderá padecer o fim, a descoberta de Leda de que a boneca
que traz consigo estava de barriga prenhe de areia, água e restos, resíduos que
são criteriosamente extirpados pela professora: “Nani, Nani. A boneca,
impassível, continuava a vomitar. Você jogou na pia todo o seu limo, muito bem.
Abri os lábios dela, alarguei com um dedo o furo da boca, deixei a água da
torneira escorrer dentro dela e depois a sacudi forte para lavar bem a cavidade
turva do tronco, do ventre, e enfim retirar a criança que Elena havia posto
dentro dela. Brincadeiras. Dizer às meninas tudo, desde a infância: mais tarde,
elas é que vão pensar em inventar para si um mundo aceitável”.
A própria
Leda, desde o rapto da boneca, recompõe o gesto de brincar de boneca e ao se dá
conta disso reflete criteriosamente que “uma mãe não é nada além de uma filha
que brinca”. Neste gesto não é a maternidade
aquilo contra o qual lutam as forças da personagem, mas contra os dispositivos
machistas que impõem o controle sobre o corpo – e consequentemente sobre a
existência – da mulher. “Recomeçarei a partir daqui, pensei, desta coisa. Eu
deveria ter percebido logo, desde pequena, esse inchaço avermelhado e mole que
agora aperto entre o metal da pinça. Aceitá-lo por aquilo que é. Pobre criatura
sem nada de humano. Lá estava a criança que Lenuccia tinha inserido na barriga
de sua boneca para brincar de torná-la grávida como a tia Rosaria. Retirei-o
delicadamente. Era uma minhoca da praia, não sei qual é o nome científico; uma
daquelas que os pescadores amadores do anoitecer arranjam, cavando na areia molhada,
como faziam meus primos mais velhos quatro décadas antes, nas praias entre
Garigliano e Gaeta. Eu os observava na época com um nojo encantado. Pegavam as
minhocas com os dedos e as perfuravam com o anzol como isca para os peixes que,
quando fisgados, eram liberados do ferro com um gesto experiente, e, lançados
por cima dos ombros, ficavam agonizando sobre a areia seca”.
As situações
e os acontecimentos recuperados pela memória nos gestos de reflexão e cuidado
para com a boneca não alteram apenas a rotina comum e a vida dos envolvidos com
o rapto do brinquedo, mas a própria percepção que Leda faz de si. Há entre a
mulher recém-liberta e movida por um bem-estar sem explicações e a mulher
depois de limpar e arrumar a boneca uma diferença tão profunda que marcada pela
percepção das transformações físicas do tempo sobre o corpo: “Tomei banho e me
olhei no espelho enquanto me enxugava. A impressão que eu tinha de mim naqueles
meses mudara abruptamente. Não me achei rejuvenescida, mas envelhecida, magra
demais, um corpo tão seco a ponto de parecer sem espessura, pelos brancos em
meio aos negros em meu sexo. // Saí e fui à farmácia me pesar. A balança
imprimiu em uma folha o peso e a altura. Eu estava seis centímetros menor e
abaixo do peso. Tentei mais uma vez e a altura diminuiu ainda mais, o peso
também. Fui embora desorientada”.
A certa
altura do romance a narradora se pergunta como o tempo fez com que ela se
envolvesse abruptamente nesse torvelinho de situações e qual o sentido dessa
relação perturbadora que desenvolve por Nina e a filha. Com isso, Ferrante descobre
– e talvez seja esta uma de suas obsessões literárias – quanto nossas
realidades individuais se repetem infinitamente com os outros, embora, cada uma
seja já também outra realidade porque as percepções são proporcionalmente diversas.
Leda se vê na jovem mãe e nutre por esta uma obsessão que se confunde com o
mesmo desejo de Nina, a de testar sua existência na libertação do corpo de
todas as amarras impostas; é assim que se explica seu interesse pela relação
proibida que Nina desenvolve com o salva-vidas e sobre a qual passa a exercer
um controle pela posse da possibilidade de plena realização desse desejo do
jovem casal.
Com o mesmo interesse,
quer para Nina a mesma condição de seu passado de mãe – que a jovem não abdique
da possibilidade de construir sua liberdade. Mas, se as nossas realidades
individuais que se repetem com os outros são também outras realidades devido às
percepções se mostrarem proporcionalmente diversas, é porque tais realidades se
demonstram irrepetíveis. Por mais seguros que estejamos sobre nossa tarefa de
recuperá-las não temos o poder de exercer o controle sobre o outro e sequer
sobre nós mesmos. Nossa liberdade afinal se constrói até o limite da liberdade
do outro; e “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. “Às vezes, precisamos
fugir para não morrer”, diz a personagem em relação ao passado ou a situação
presente que lhes obriga a desfazer os rumos pensados para si. O fato é tudo
que se passa fora desses contornos, e o pior que sempre se passa, é drama e
danação. “Estou morta, mas bem”, assim se conclui a narrativa de A filha perdida. Porque na vida não
podemos nos desviar de nossas responsabilidades frutos das nossas escolhas, tal
como descobrirá Leda.
As ações dessa
personagem corroboram ainda com um dos medos sempre recorrentes nas personagens
femininas de Elena Ferrante advindos de uma relação controversa com o passado:
o medo de tornarem como as suas antepassadas. Ao envolver-se com Nina ela transfere
para a jovem o seu drama da juventude. “Todas as esperanças da juventude já me
pareciam destruídas, era como se eu tivesse caindo para trás na direção da
minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu
derivava”, observa a narradora a certa altura. Assim, forja-se uma variada gama
de sentidos acerca dos termos que dão título a este romance. Num deles, o que
aqui chegamos das relações dessas notas, a perda desta dimensão do passado, recuperado
na narrativa pelo tema da perda da filha, situação adversa vivida pela
narradora cujo sentido é renovado pela memória desse passado que se projeta
através do drama sofrido por Nina e pela filha sem a presença de um objeto de
afeto que coloca a mãe e Elena em relação.
Nesse drama sobressai
a história de uma identidade que sempre se aterra com as determinantes lógicas
da cultura. Leda quer dizer para as mulheres não se sujeitarem ao apagamento de
suas dimensões de humanas – e logo passíveis dos mesmos dramas, desejos, frustrações
que lhes compõem – em detrimento de uma verdade imposta e mesmo autoimposta de
que à mãe só se lhe sobra a tarefa de bordar os limites da história dos filhos
ao ponto de abdicar de suas liberdades mais íntimas ou de seus interesses
pessoais enquanto indivíduo. Nesse drama é preciso mesmo morrer para ser outra, a capaz de agir por seus próprios meios. Não
há vida se não vivemos.
***
(fragmento da obra)
"Comi algumas uvas na cozinha. Nani estava em cima da mesa. Pareceu-me que estava com ar de limpa e nova, mas também com uma expressão indecifrável, tohu-bohu, sem a luz de uma ordem clara, de verdade. Quando foi que Nina me escolheu lá na praia? Como entrei na sua vida? Aos trancos, sem dúvida, caoticamente. Atribuíra a ela um papel de mãe perfeita, de filha bem-sucedida, mas compliquei sua existência subtraindo a boneca de Elena. Dei a impressão de ser uma mulher livre, independente, refinada, corajosa, sem partes ocultas, mas construí as respostas às perguntas aflitas com exercícios de reticência. Com que direito, por quê? Nossas afinidades eram superficiais, ela corria riscos muito maiores do que os que eu havia corrido vinte anos antes. Quando jovem, eu tinha uma forte percepção de mim mesma, era ambiciosa, separei-me da minha família de origem com a mesma força ousada com que nos libertamos de alguém que nos dá um puxão. Deixei meu marido e minhas filhas em um momento no qual tinha certeza de ter aquele direito, de estar do lado certo, sem contar que Gianni se desesperara, mas não fora atrás de mim, era um homem atento às necessidades dos outros. Nos três anos sem minhas filhas, nunca fiquei sozinha: havia Hardy, um homem de prestígio, ele me amava. Eu me sentia apoiada por um pequeno mundo de amigas e amigos que, mesmo quando discordavam de minhas escolhas, respiravam a mesma cultura que eu, entendiam minhas ambições e meu mal-estar. Quando o peso no fundo do ventre se tornou insustentável e voltei para Bianca e Marta, algumas pessoas haviam se retirado em silêncio da minha vida, algumas portas tinham se fechado para sempre, meu ex-marido decidira que era sua vez de fugir e foi embora para o Canadá, mas ninguém me expulsou nem me julgou indigna. Nina, por sua vez, não tinha nenhuma das defesas que eu ergui antes da ruptura. E, nesse meio-tempo, o mundo não havia melhorado nem um pouco; pelo contrário, tornar-se mais cruel com as mulheres. Ela - em suas próprias palavras -, por muito menos do que eu tinha feito anos antes, corria o risco de ser degolada".
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