Todos
carregamos desde a expulsão do homem do paraíso a dor do luto. Ao compreender
esse gesto do mito fundacional da colônia humana como uma perda da eternidade e
a necessidade de convivência com o fim, a queda da criatura perante o Criador é
situação da qual nunca nos recuperamos. Até hoje o que fizemos tem sido
desprezar o fim e viver com se a vida fosse uma eternidade; a consciência da
finitude só se abre quando atravessamos a possibilidade da morte ou quando nos
aproximamos da velhice. Mas, a vida, fora dessas condições é, desde sempre, não
mais que um estranho amontoado de perdas.
E as perdas
não se findam a deixarmos de viver ou à morte dos entes queridos; também
perdemos coisas pelas quais guardamos afetividades e cujo vazio deixado é capaz
de nos produzir sismos tão fortes quanto a dor do luto. Mas, é bem provável
que, a perda das coisas seja tragada pelo esquecimento, enquanto a dor da perda
de uma figura muito querida torne-se uma marca indelével de nossa vida.
Diariamente, teremos de enfrentar situações, marcas, sinais, vozes, que sempre
nos trará os tempos em vida da pessoa. E lembrar-se é a única forma de
eternidade que temos consciência. A memória não é apenas traços de uma imagem,
a presentificação do ausente é uma forma de presença.
O livro de
estreia de José Luís Peixoto insere-se nessa corrente de reflexão sobre a dor
da perda; não chega a ser diretamente (como se a modo de um ensaio) uma
tentativa de compreensão sobre a finitude. Ao dizer isso, recordo esse traço
num romance de Inês Pedrosa, Fazes-me falta. A obra da escritora
portuguesa é construída numa troca de correspondências entre uma morta e seu
companheiro. Ainda que aqui aflore os aspectos de uma relação amorosa
atropelada pelo destino, aí está o luto da perda, a profunda solidão, a
lembrança sobre os encontros e os desencontros, a irrealização de amor sempre
adiado. Elementos, alguns deles, que se repetem no texto de Peixoto, que,
diferentemente do romance em questão, vigora apenas uma única voz. Alguns deles porque
o amor assumido entre pai e filho (além de diverso do amor dos amantes no
romance de Inês Pedrosa) é realizado em sua plenitude como fica notado na
singeleza com a qual o narrador de Morreste-me trata de
acontecimentos corriqueiros e o cuidado com as dores da doença.
"Cheguei onde sei que estás, sob uma campânula de tempo cristalizado, tempo que não passa, mármore. Tem o teu nome, pai. O teu nome importante, pai. Escrito para sempre, como as nuvens, com as coisas que não morrem. E o teu rosto esmaltado olhou-me muito. Não me vias há muito tempo. Olhámo-nos tanto e sei que tiveste vontade de me falar, de me perguntar. Contei-te as novidades da menina da minha irmã que ainda procura por ti, que já diz bem avô. E vi um sorriso no parêntese do teu olhar."
Embora se
refira a um episódio da sua própria vida, Morreste-me não é para ser
lido como um registro biográfico dessa perda, assim como é, por exemplo, o
romance do norueguês Karl Ove Knausgård, A morte do pai. O texto de
Peixoto é como se uma interrogação ante a finitude e a vida que segue; é um
fluxo de rememoração para lidar com a convivência da morte, o vazio da perda.
Há uma consciência de que a morte não se constitui uma oposição à vida e
vice-versa; há uma observação poética sobre o fim como um recomeço ou o fim
como uma forma para o recomeço.
A saudade da
figura que amamos – e mais que isso, da figura que nos ensinou a apreender o
mundo e senti-lo com toda sua força, a encará-lo como uma constante de dias
pelos quais havemos de lutar. Peixoto revela-nos a simplicidade da existência
sempre cerrada num mesmo eixo de ora luz ora escuridão; eis um símbolo que
cerze toda a narrativa. Revela-nos ainda a efemeridade da vida e faz dela forma para
o texto que não alcança a dimensão dos romances de maior fôlego que escreverá
depois. Aliás, Morreste-me é um pequeno conto; o seria um poema em
prosa?
Morreste-me é
a voz de um órfão. É uma voz no silêncio, que não se interroga, apenas revive.
É uma narrativa sobre o desamparo, sobre está só e a necessidade de assumir
propriamente a vida. É este um texto que se lê com lágrimas nos olhos tamanha
sua profundidade existencial. É a voz de quem tenta apalpar a consciência do
vazio deixado pelo outro e da posição que agora o órfão tem de ocupar ante o
pai.
Peixoto une
magistralmente a prosa à poesia como estratégia não de reconstrução do mundo,
condição desde sempre coerente da narrativa de ficção. A união entre as formas
textuais, aliás é um gesto por fazer valer outra noção mimética, não a da
representação, mas a da interpretação. Morreste-me é uma
interpretação sobre a perda, mas é também o desenvolvimento de uma consciência
relativa ao lugar do pai. A orfandade paterna sempre cobrará do filho a vez de
ser sua presença. É assim, por exemplo, que se apresenta no texto a recorrente
ocupação do filho em vestir-se como se vestisse o pai, em usar o carro como que
usava o pai.
A narrativa
é, desse modo, como se a leitura de um quadro em que imagem invocada tem sempre
seus vazios preenchidos por um passado que simultaneamente comum ao lembrado e
a quem lembra. Isto, por exemplo, é coluna de sustentação para Não entres
tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes. Mas, ao invés desse
romance ora citado, Morreste-me tem o luto e sua face iluminada por
uma presença contínua da vida; se ela é sucessão de perdas é também sucessão de
inícios.
A vida é
como se uma tentativa contínua sempre na esperança de alcançar-se mais
perfeita. Parece nos querer lembrar o autor. Assim, se a escuridão é um símbolo
que cerze a grafia da narrativa, a luz ocorrida com a mesma frequência, é outra
recorrência. Dia-noite, sol-chuva, pares não antitéticos, mas continuações
assim como o filho ver-se continuação do pai. Há nessa melancolia do fim,
tênues fios que são encorajadores para a existência.
Morreste-me foi
escrito para dizer que a lembrança (e ela gravada pela palavra) é uma maneira
de eternização até quando já a memória se perder. Se a pessoa amada é marca
numa biografia, a memória nunca é arquivo de se fiar; como tudo, ela tem um fim. A
narrativa afinal é também uma inscrição cuja forma é a de postergar esse lapso ou o silêncio que pode tomar corpo e substituir a presença; narrar é uma das maneiras mais complexas e também significativas no grande mapa do não-esquecimento.
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